SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



domingo, 25 de julho de 2010

TEMPOS E QUINTAIS (Crônica)

TEMPOS E QUINTAIS

Rangel Alves da Costa*


Não precisa ter passado dos cinqüenta para reviver com saudades o tempo dos quintais. Quintais abertos, grandes, correndo até onde começam as pastagens e as plantações, ou mesmo quintais curtinhos e acanhados, mal cabendo os apetrechos do menino brincar e a velha caixa d'água colocada no chão para receber, através do cano que pendia diretamente do telhado, as águas de chuva que um dia caíssem.
Quintais são lugares sagrados na vida interiorana, são como templos de terra e gravetos onde são feitas as oferendas da sobrevivência. Por ali ciscam as galinhas, os patos e os perus; o cágado se esconde num canto, onde fica cavando areia para depositar seus ovos; o porco passa destruindo tudo. Também como é que se faz um chiqueiro tão baixinho e tão perto da fazendinha onde Joãozinho brinca com seus amigos?
Muitas vezes, o danado do porco deixa sua lama e sua lavagem por lá e vem fuçar bem onde os meninos guardam suas riquezas, seus animais, suas máquinas, seus carros. Cada ponta de vaca é um boi, vasilhame seco de óleo de comida com quatro rodinhas por baixo é um carro-pipa, pedaços de madeira se transformam em casas e carros-de-boi. Basta cavar um pouquinho a terra, colocar um plástico azulado por baixo e derramar água por cima e já se tem um tanque cheinho para dar de beber aos animais. Gado de ponta também se mistura aos animais de barro, e se pode ver cada touro bonito, cada alazão destemido, cada coisa e cada mundo.
Nos quintais interioranos há sempre o varal e o sol e lua e estrala passeando por cima; tem o galinheiro quando se tem galinha; o poleiro que é para as aves se apresentarem ao entardecer e logo cedinho cantar a aurora; tem plantas nativas, flores sertanejas, poesia em cada objeto espalhado refletindo a vida jogada à sorte; tem bicho que morde e mata; tem arame e tem cercado; tem um pequeno pomar com goiabeira, mangueira e mamoeiro; tem passarinho cantando e uma velha bacia cheia de roupa para coarar.
E tem um banquinho onde Tião vai desfiando o fumo com canivete para fazer o cigarro de palha. De palha de milho mesmo, pois de papel amanteigado não presta não, acaba de vez, não tem gosto, não tem fumaça cheirosa, não traz a saudade que o pitar verdadeiro traz. Mas tem que ser assim: desfia parte do rolo de fumo, espalha a quantidade na mão, remói mais uma vez com os dedos, depois pega o papel de trás da orelha, coloca o fumo e enrola e depois passa a língua pela ponta da palha que é pra saliva colar a palha. Depois é só pegar o tição e pronto.
Mariazinha também gosta de sentar no banquinho do quintal. No entardecer, de vez em quando ao lado do marido, toma uma talagada de casca de pau e senta para lembrar da família, muitas vezes chora, outras vezes cantarola cantigas bonitas de ontem e revive mundo e história. E toma mais uma talagada e diz na voz afinada que "Essa ciranda quem me deu foi Lia que mora na ilha de Itamaracá...", "De que me adianta viver na cidade se a felicidade não me acompanhar...", "Aquela colcha de retalhos que tu fizeste, juntando pedaço em pedaço foi costurada...". E a saudade bate, e não há como a saudade não doer, mas não pela vida que tem, pois é feliz, mas pelos tempos idos que não pode mais viver...
Outro dia, Joãozinho caiu no quintal e machucou o joelho. Mariazinha pediu a ele que trouxesse dali mesmo o remédio pra ficar bom em dois tempos. E o menino pegou um pouco de mastruz pelos cantos e então a mãe separou dois tantos e fez o milagroso remédio. Machucou uma parte do mastruz até ficar uma pasta esverdeada e colocou por cima de onde doía, e com a outras fez um chá bem forte e mandou que ele tomasse. E não deu outra, pois não durou muito e o danado já estava chupando umbu trepado lé em cima do umbuzeiro. Mas não era só isso não, pois Mariazinha tinha ali no quintal uma verdadeira farmácia, e das mais sortidas, como ela mesma dizia: samba-caitá, capim santo, canudinho, malva, boldo, cidreira, erva doce e muitas outras que, na infusão ou no chá, garantiam a saúde de toda a família.
Mas o tempo passou e Tião teve que reduzir seu quintal, derrubar a cerca e levantar um muro. Compraram o terreno de trás e construíram um armazém bem alto. Do outro lado, o vizinho fez um muro mais alto ainda. Onde era o pequeno pomar há agora uma pequena cobertura de lona com uma mesinha embaixo. Comem ali todos os dias. E mordem a fruta da feira e tomam o remédio da farmácia. Joãozinho empobreceu. Perdeu sua fazendinha e seu gado. Não há mais criação de nada. E quando o sol bate ou a lua sai é como se tudo fosse tão artificial. Como a vida que era de sentimentos e agora é de plástico.





Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

Um comentário:

Caca disse...

A natureza, em ritmo acelerado vai se tornando uma coisa exótica para as novas gerações. Cada vez mais teremos mais zoológicos e jardins botânicos, numa espécie de museus para que a futuras gerações saibam como foi um dia. É uma dor. Me deu saudades dos meus tempos de criança, entre mangueiras e roseirais, galinhas e hortas e ervas medicinais. abraços. Paz e bem.