SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



domingo, 4 de julho de 2010

NO BAÚ DO CORAÇÃO (Crônica)

NO BAÚ DO CORAÇÃO

Rangel Alves da Costa*


Porque não somos insensíveis, porque não somos inconscientes, porque não podemos negar o passado e o agora, porque não deixamos de reconhecer que a vida é dialética de sorriso e sofrimento, porque não podemos esquecer que um dia saímos por uma porta para chegarmos onde estamos agora, porque podemos fingir sobre tudo embora não esquecemos de nada, e principalmente porque temos a necessidade de nos reencontrar, é que sentimos a necessidade de guardar nossas outras vidas em nossa própria vida.
Há os que escrevem em pergaminhos e depois deixam suas memórias empoeiradas em sótãos empoeirados e esquecidos; outros tentam organizar seus percursos em arquivos, cds e disquetes; outros ainda distribuem em calhamaços os grandes feitos e as desilusões em notas de rodapé; e não são poucos os que se contentam em guardar tudo na memória, para lembrar somente aquilo que lhes dê prazer. Prefiro guardar tudo num velho e novo baú, tão antigo que foi feito ontem e já está envelhecido. Quantos anos eu tenho mesmo?
Assim, admiro aqueles que, como eu, constroem seus baús e os instalam num lugar bem visível no coração. Sempre de madeira nobre – como é o sangue da história -, com os requintes do verniz da vida e os adornos de tantos idos, são cuidadosamente instalados para que as paixões sempre presentes no peito não tomem o lugar primordial daquilo que é medida para todas as coisas, pois no baú estarão as moedas com os seus dois lados, as faces em todas suas feições e as verdades sem negar as mentiras.
As chaves desse baú, diferentemente do que se possa imaginar, estão espalhadas por todos os lugares. Devem estar sempre ao alcance do olhar e do pensamento, pois as situações surgidas muitas vezes requerem que se abra o baú para ver se algo parecido com aquilo já foi vivenciado, já se tornou lição a ser seguida. E quando o baú emperra e não quer abrir é porque é melhor não arriscar, não desafiar aquilo que se faz assim por sabedoria.
Em qualquer lugar e a qualquer instante, as chaves poderão reluzir e tilintar como num passe de mágica, como algo inesperado que não se pode subestimar. É que talvez ele queira que a pessoa vá visitá-lo, busque as saudades boas, as lembranças de um tudo e faça prevalecer aquela vontade danada de reviver os tempos idos. Às vezes para amar mais ainda, às vezes para fazer tudo diferente, às vezes para o sorriso com os acertos e as lágrimas com os erros, e outras vezes simplesmente para ter a certeza de que o passado foi vivido na luta para não ser em vão.
Que ninguém se espante, mas a primeira carta de amor que Maria recebeu do seu eterno amado ainda está no baú; Joana guarda nele, toda enroladinha num papel amarelado, a aliança que não usou mais porque o noivo sumiu antes do casamento; Pedro esconde lá dentro um monte de cartas que escreveu em noites de amor demais, mas que nunca teve coragem de enviar para Lúcia; esta chora todas as vezes que lê os bilhetinhos que nunca foram enviados para Pedro; Célia não se contém quando abre o baú para visitar seus pais, ali repousando como se estivessem vivos nas velhas fotografias. Não se sabe por que nem a quem pertence, mas Cosme guarda com muito cuidado uma mecha de cabelos dentro de um vidrinho. Tonhão guarda um projétil; Cosme uma certidão de óbito; e Mônica um endereço.
No baú do coração, os objetos materiais, físicos, palpáveis, se transmudam em imagens com a mesma essência. Se o que se enxerga está amarelecido é porque o tempo quis assim, é porque se fez tempo e perpetuamente existirá, mesmo que um dia o dono do baú passe a viver, se houver merecimento, no baú de outros corações.
Dentro do meu baú eu só guardo um coração, e quantos baús dentro dele!...



Advogado e poeta
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

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