SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



segunda-feira, 26 de julho de 2010

O ÚLTIMO DISCURSO DA RIQUEZA (Crônica)

O ÚLTIMO DISCURSO DA RIQUEZA

Rangel Alves da Costa*


Os três filhos do patriarca, dois homens e uma mulher, já haviam convidado os amigos, namorados, ex-namorados e amantes para mais uma festa na mansão. Ao menos duas vezes ao mês os filhos faziam festanças de virar a noite, com tudo importado, comidas e bebidas do bom e do melhor. Sempre terminavam na piscina, em cuja pérgula o champanhe francês era derramado à vontade na cabeça e pelos corpos desnudos de cada um.
Não se sabe o porquê, mas aquela festa não havia sido iniciativa dos futuros herdeiros, mas sim do próprio patriarca, que já com idade avançada talvez quisesse se animar um pouco mais ao lado dos filhos e seus amigos. Já conhecia boa parte daquelas pessoas que estariam ali, pois muitos deles entravam na mansão como se fossem da própria casa, da família, numa facilidade que nunca lhe agradou. Fartavam-se do que queriam e ainda saíam com algum no bolso. Na verdade, não iam fazer outra coisa, a não ser tirar dinheiro fácil dos filhos do patriarca e até mesmo deste. No final de tudo, as contas sempre recaíam sobre o velho.
Assim, no horário determinado, e até bem antes disso, os convidados já se espalhavam pelos suntuosos salões da mansão. Muitos se escondiam pelos quartos com suas amantes e vice-versa, numa luxúria costumeira e dolorosa para o patriarca. "Papai, é a juventude que é assim mesmo, ávida pelo brincar e namorar, curtir a vida adoidado e comer do bom e do melhor, sem ter medida para nada. Afinal, somos ricos demais, bilionários, e uma festinha dessa é como uma esmola que se dá a um playboyzinho faminto para saber o que é a verdadeira riqueza".
As luzes brilhavam e as comidas e as bebidas amontoavam-se por todos os lugares, ao lado dos castiçais, porcelanas e toda uma prataria importada. Algumas das bebidas mais caras do mundo estavam servidas ali: Vinho Romanée-Conti, Chateau Lafite, Tequila Pasion Azteca, Conhaque Henri IV Dudognon Heritage, Champanhe Heidsieck & Co. Monopole, Uísque Macallan Fine and Rare 1926, Saquê Watari Bune e Vodka Diva, dentre outras selecionadas pelo preço caríssimo. Os petiscos também eram de primeira linha, todos feitos com produtos importados e por chefs franceses exclusivamente contratados para cada festa. Era um vislumbre, o máximo de luxo e de esbanjamento.
No auge da festança, com todos os convidados já sob os primeiros efeitos do álcool, o velho mandou que baixassem a música, se postou no alto da escadaria e pediu licença para falar rapidamente alguma coisa. Os filhos quase enlouquecem: "Mas papai, venha pra cá se divertir com a gente, isso não é hora de discursos. Venha, venha aqui tomar um pouco de champanhe e esquecer por instantes dos seus milhões, bilhões, trilhões...".
O patriarca nem deixou o filho encerrar e se apressou em falar:
"É mesmo sobre os milhões, os bilhões, os trilhões que quero falar. Não existe mais nada disso, nem um milhão, um bilhão e muito menos um trilhão. Não existe mais nada disso. Todo o restante do nosso dinheiro, os últimos centavos de toda a riqueza da família vocês estão aí agora bebendo e comendo, como sempre fizeram, destruindo em luxo, farras e festanças toda uma vida dedicada aos maiores esforços para formar um patrimônio. Vocês, meus três filhos, conseguiram destruir tudo, e não só o meu patrimônio como aquilo que lhes pertenceria um dia por herança. Hoje vocês não herdarão mais nada, a não ser dívidas e o desprazer de não terem mais amigos e serem olhados com sarcasmo e apontados com deboche como aqueles que um dia se acharam milionários, bilionários, trilionários...".
A filha desmaiou, enquanto os outros dois filhos se olhavam e um deles dizia com as mãos na cabeça: "Mas o que está dizendo seu velho ensandecido, desça já daí!". Os convidados baixavam a cabeça e cochichavam entre si. E o patriarca continuou, apontando para os convidados:
"Não estão vendo estes que estão aí, que sempre levaram uma vida burguesa a custa dos outros, nenhum deles vale nada. Amanhã nenhum reconhecerá vocês nem ajudará a pagar suas dívidas. E não farão isto porque não prestam, são uns velhacos, pois chegavam todos os dias aqui, sempre às escondidas, pra tomar empréstimos e mais empréstimos. Sei muito bem quanto cada um me deve...".
E de repente, quase que imperceptivelmente, os convidados foram saindo um a um, desconfiados, apressados, sem se despedir e sem olhar pra ninguém. Os que ficaram, doidos para encontrarem uma oportunidade para saírem furtivamente, tiveram que continuar ouvindo:
- Vocês e seus amigos, meus filhos, com essas luxúrias e esses desregramentos, conseguiram transformar um rico patrimônio numa dívida hoje já imensa. Hoje não temos mais nada a não ser dívidas. Estão vendo isso tudo aqui, esses móveis, esse brilho todo, essas bebidas e essas comidas, nada disso nos pertence mais... – e fez um aceno.
Com o gesto do patriarca, pessoas foram entrando nos salões e recolhendo tudo: móveis, pratarias, copos, uísques, champanhes, tudo, deixando a mansão praticamente vazia. E o velho continuou:
"Estão vendo, não temos mais nada, mas o pior é que as dívidas ainda chegarão até vocês. Chegarão até vocês porque os meus dias de vida estão curtos, estão contados, e sei bem disso. Agora cuidem de desocupar a mansão e ir procurar moradia na casa dos seus amigos. Por falar em amigos, onde estão seus amigos que há pouco estavam aqui?".
De repente, o velho colocou a mão no peito, mostrou a face retorcida de dor e foi ajoelhando até cair. Os filhos nem se importaram com isso, pois estavam brigando, trocando sopapos, um culpando o outro.
A filha única ainda continuava desmaiada, estendida sem que ninguém se importasse com o seu estado. Seu rosto parecia com o mesmo semblante da família, pálido, sem brilho nem cor, parecendo ter morrido.





Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

Um comentário:

Caca disse...

Poucos membros da burguesia alta têm a coragem de fazer tal gesto, mas isso é muito comum entre as melhores famílias abastadas desse mundo. Trabalhei na década de oitenta para uma família assim mesmo. Só que o patriarca, no caso , tinha sete filhos. Estão hoje, todos arruinados. Abraços. Paz e bem.