SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



segunda-feira, 5 de julho de 2010

EVANGELHO SEGUNDO A SOLIDÃO – 36

EVANGELHO SEGUNDO A SOLIDÃO – 36

Rangel Alves da Costa*


Havia saído para resolver poucas coisas e de repente surgiram situações que jamais esperava. Daí aquele tempão todo na cidade e somente ao entardecer Lucas retornava para casa, cheio de pensamentos para colocar no lugar. O encontro com o delegado, a conversa com o prefeito, as palavras da diretora, a vontade de aprender do casal de idosos e aquele ressurgimento da imagem de Ester, tudo aquilo deveria ser repensado com cuidado. E não podia esquecer das lições sempre inteligentes do Padre Josefo. Muitas dessas coisas deveriam ser logo esquecidas, enquanto outras teriam que ser repensadas cuidadosamente.
Guardando ainda na boca o bom sabor daquele cafezinho servido pelo casal, deu vontade de colocar o bule no fogareiro para tentar imitar aquele aroma e gosto. Se sua mãe estivesse viva, certamente que por aquela hora toda a redondeza já estaria tomada pelo cheiro bom se espalhando pelo ar. Depois chegava o seu pai com arreios e tiras de couro nas mãos para experimentar do café torradinho e feito na hora, no fogão crepitando sobre pedras no fundo do quintal. Era um gole e uma prosa, um conversar com a esposa sobre a chuva que não chegava, sobre quantos ovos estavam dando as galinhas, sobre o gato que vivia cercando a gaiola do passarinho, sobre um mundão de coisas que hoje é apenas saudades.
Colocou o café grosso numa xícara antiga e foi dar uma voltinha pela frente da casa, próximo ao barracão, apreciando a natureza ao entardecer, constando mais uma vez quanta beleza se formava num final de tarde silencioso, somente com os sons próprios da natureza e dos animais que anunciam que dali a instantes será hora de recolhimento. Caminhou um pouco mais e sentou num tronco embaixo de uma velha umburana, árvore que fazia sombra por ali há mais de trinta anos, ainda pelas contas de seu pai.
E como chegam os pensamentos nesses instantes bons de solidão, parecendo vindos nas folhagens secas que vão se depositando ao redor do homem encontrando-se consigo mesmo. Não era mais tempo pra isso, pois já hora deles estarem nas beiradas das lagoas e tanques bebendo água para depois seguirem até seus ninhos, mas verdade é que passarinhos chegaram por ali mansamente, voando baixo e pousando nos galhos mais próximos. Um canário acolheu-se bem no seu ombro, como se um ramo seguro de árvore estivesse ali. Enquanto as folhas secas eram trazidas pelo vento mais forte, os pássaros cantavam alegremente como se fosse alvorecer. Que coisa mais estranha, pensava Lucas.
Ouvindo pisadas macias que vinham por trás, Lucas virou cuidadosamente a cabeça para não espantar o canário e viu que chegavam mansamente uma lebre e uma sariema. Olhou fixamente para ter certeza do que estava enxergando e não teve dúvidas de que eram os dois animais mesmo, vindos quase emparelhados. O problema é que aquelas duas espécies há muito que já estavam extintas naquelas redondezas, desde que a derrubada das árvores nativas destruíram suas habitações naturais.
Teve o mesmo espanto quando virou novamente a cabeça e percebeu que estavam chegando diversos animais, até mesmo de espécies que nunca tinha visto antes. Raposa, preá, cobra, nambu, perdiz, veado, tatu e galinha do mato eram fáceis de reconhecer, mas bichos de plumagens estranhas, características e feições diferentes, eram outros quinhentos, como se dizia por lá. Com certeza que algo estava errado, imaginou.
E começou a cair uma chuva forte, assim repentinamente, de um segundo pra outro, acompanhada de relâmpagos que pareciam faíscas fininhas e trovões quase inaudíveis, tudo acompanhado de uma ventania que parecia tornar os pingos ainda mais pesados ao cair adiante. Adiante porque toda aquela tempestade repentina não fez cair sobre Lucas uma gota de chuva sequer. Mesmo quase no meio do tempo, pois debaixo de uma árvore, a chuvarada caía intensamente sem molhar ele nem os animais. Para os bichos e os passarinhos era como se não estivesse ocorrendo nada daquilo, pois não se afetaram em nada com aquela transformação toda.
Toda essa tempestade não durou mais do que três minutos. Num instante e o tempo voltou ao estado normal, como se não tivesse acontecido nada, só que agora deixando a paisagem muito mais escurecida, nas cores e nas feições da noite caindo por completo. E foi quando surgiu uma luz diante de Lucas e desse feixe incandescente foi surgindo um anjo.


continua...





Advogado e poeta
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

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