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A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



sábado, 10 de julho de 2010

MANHÃ QUE AMAVA SOL, QUE AMAVA NOITE (Crônica)

MANHÃ QUE AMAVA SOL, QUE AMAVA NOITE

Rangel Alves da Costa*


Razão tinha Shakespeare, ao colocar na boca de Hamlet que há mais mistérios entre o céu e a terra do que supõe nossa vã filosofia. No mundo onde os ditos racionais não se encontram para fazer valer o amor amoroso que lhes foi concedido, cabe ao silêncio, timidez e parcimônia da natureza e dos astros procurarem vivenciar ao extremo, com direito a alegrias, ciúmes e desesperos, o amor de paixão e de dor.
Verdade é que enquanto os seres humanos se afastam cada vez mais dos encantos do verdadeiro amor e da paixão verdadeira, a manhã, o sol e a noite se entrelaçam avidamente numa disputa amorosa cujo enredo causaria inveja aos mais tórridos e trágicos amores, incompreendidos ou até mesmo sangrados de morte. Nada de Romeu e Julieta, nada de Tristão e Isolda, nada de Abelardo e Heloísa, mas sim Manhã e Sol e Sol e Noite.
Tudo começou quando a Manhã, que é aquela linda criatura, também chamada de aurora, alvorecer e amanhecer, e que começa a fazer sua caminhada assim que a madrugada vai embora, começou a olhar com uns olhos doces e sublimes, ávidos e encantados, para um rapaz que surgia quase sempre radiante no seu caminho. Sol era o nome desse moço louro, bonito e atraente, um rapaz iluminado.
A paixão da Manhã pelo Sol chegou como num raio, fulminando de desejos um virgem coração acostumado somente ao luzir dos orvalhos, ao aroma das flores, ao canto dos pássaros, às belezas do dia que começava. Nessa inocência majestosa, sem conhecer os segredos das precauções, assim que se viu tocada por uma centelha ardente, não soube mais o que fazer e assim começou a agir de modo que o Sol percebesse seu amor e em troca lhe desse ao menos uma réstia de esperança.
Egoísta e vaidoso sem igual, narcisista e egocêntrico em demasia, o Sol pouco se importou de início com os vexames e suspiros apaixonados da Manhã. Passava por ela, esquentava seu coração e ia espalhar seu fulgor noutro lugar. Até que num dia nublado, sem poder se mostrar como gostava, viu-se olhando quanta beleza morava na Manhã. Encantou-se ainda mais porque ela se mostrava preocupada com a tristeza dele naquele instante e o olhava toda sorridente e feliz.
Começaram a namorar nesse instante, e quando voltou a brilhar novamente, o Sol já se via apaixonado e sem poder voltar atrás. E assim se encontravam sempre pelos jardins, bosques e descampados assim que o dia amanhecia e ficavam juntinhos até que ele saía para trabalhar, para brilhar na sua intensidade maior, que era a partir do meio-dia. A partir desse instante não podia mais ver a Manhã, que já tinha ido embora. E foi aí que começou o problema.
Aqueles astros que achavam que o Sol enfim estava de namoro firme, apaixonado, deixando a vida de boêmio galanteador, ficaram surpresos ao saber que a fragilidade dos sentimentos humanos também havia alcançado o astro-rei, pois o Sol deu uma recaída. Com a desculpa de que não podia ficar tanto tempo sem namorar, um dia, num entardecer quando já se preparava para ir embora, eis que ouve as nuvens conversando sobre a Noite encantadora que estava chegando, e então ele se escondeu por trás de uma daquelas nuvens e esperou que ela aparecesse ao longe. E foi amor à primeira vista.
A Noite, faceira e misteriosa como ela só, nem olhava pra ele, preferindo caminhar solitariamente pelas ruas escurecidas e tristes da vida. E isso deixou o Sol ainda mais apaixonado, jurando a si mesmo que jamais sentiu tanta paixão no coração como naqueles verdadeiros momentos de dor. Pensou e pensou no que fazer e então implorou à Lua e às Estrelas para que intercedessem por ele, que comentassem com a Noite sobre suas pretensões e suas qualidades, pois não suportaria viver sem aquele encanto negro e de puro mistério. Verdade é que de tantos pedidos e recados, a Noite acabou cedendo e começaram a namorar, se encontrando sempre no local que ficou conhecido como Sol da Meia-Noite.
Apaixonado pela Noite, mesmo assim o Sol continuava amando a Manhã. Mas um dia os astros fofoqueiros desceram até à natureza e contaram tudinho à Manhã. E não prestou não. No mesmo instante o céu escureceu, surgiram raios e trovões e uma infindável tempestade começou a cair. E lá em cima, atrás das nuvens, o Sol ajoelhado e sem nenhum brilho diante das duas, da Noite e da Manhã. Ouviu o que não queria, chorou, pediu perdão, mas não teve jeito.
Humilhado e abandonado pelas duas, o Sol ficou mais de uma semana sem aparecer. Dizem que por vergonha. E hoje, quando quer se enxerir para alguém, tem que se contentar em ir à praia e ficar brilhando por cima de uma e de outras, queimando e reluzindo sobre seus corpos desnudos, mas sempre olhando pra cima com medo da Noite chegar.




Advogado e poeta
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-setao.blogspot.com

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