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quinta-feira, 9 de agosto de 2012

NOS TEMPOS DO CADERNINHO (Crônica)


                                                  Rangel Alves da Costa*


Atualmente a desconfiança é tão grande que até no comércio à vista, a dinheiro como se diz por aí, muito comerciante ainda olha meio cabreiro para o comprador. Cara de gente enrolada, a nota repassada pode ser falsificada, logo pensa. Mas houve um tempo muito diferente.
Noutras priscas, principalmente nas cidadezinhas interioranas, a confiança era tanta entre os vendeirim de pequeninas mercearias e botecos e os moradores do lugar, que quase não existia dinheiro em circulação. Só no final da semana, na quinzena ou no fim do mês. Vendia-se e comprava-se tudo, mas o pagamento sempre ficava pra depois, com tudo sendo devidamente anotado no caderninho.
O caderninho de anotações do pequeno comerciante ditava a riqueza da população, seu poder aquisitivo, suas preferências. Nele estava escrito quem tinha um pouco mais ou quem só comprava os gêneros básicos. Alguns só compravam fiado o quilo de açúcar, de feijão, de farinha, o pacote de café e de massa de milho. Dificilmente arroz, mas outros ainda se arriscavam em sabonete, desodorante, a coisa mais luxuosa.
Constando duma cadernetinha mesmo ou caderno médio, se tivesse feição de amassado, muito rabiscado, amarelado demais, era porque o comércio ali era forte. Mas uma força dentro da pobreza, de uma condição social de subdesenvolvimento, de lucratividade obtida apenas com o trabalho na terra ou com uma parca aposentadoria.
Tal caderninho nunca ficava à mostra dos outros clientes, de modo que ninguém pudesse xeretar quanto os outros deviam. Sempre guardado debaixo do balcão ou na gavetinha de dinheiro, em cada página continha o nome da pessoa, a descrição dos produtos adquiridos e o seu preço. O que já havia sido pago era colocado riscado e iniciava-se uma nova conta por baixo. E assim por diante.
Como o vendeirim geralmente era pessoa sem estudo, mal sabendo ler e escrever, para manter o seu caderninho induvidoso dava um trabalho danado. Onde estava escrito asuca, a intenção era ter escrito açúcar, faria de mio pra farinha de milho, salao para salame, sa para sal, e tantos outros nomes que só sabia desvendar quem havia rabiscado. Mas o importante é que tudo era anotado com a quantidade e o valor.
Minha avó tinha o seu nome escrito no caderninho numa vendinha próxima de sua casa. Quando estava precisando de qualquer coisa era só ir até o minúsculo comércio de Lourenço e fazer o pedido. Não precisava nem falar em dinheiro, pois o vendedor já sabia que ao final do mês ela ia até ali com o dinheiro cuidadosamente preso na saia pra riscar as compras do mês. E começava tudo de novo.
Problema sério se deu certa vez num barraco de cachaça que também anotava as goladas dos bebedores num caderninho. O sertanejo chegava, tomava três ou quatro doses e mandava o rapaz anotar. E este realmente anotava: três doses de angico, duas doses de umburana, cinco doses de quebra-pedra. Só que quando chegava o dia do acerto de contas, quando o sertanejo contente ia limpar o seu nome pra tomar outras, ficava era enraivecido de querer criar confusão.
Eis que fazia uma ideia de quanto estaria devendo, pois nunca bebia pra não passar da conta e depois não se lembrar do fiado deixado, mas o rapaz da barraca só apresentava uma conta bem maior e com as doses de pinga bem acima do que ele havia tomado. E quando ouvia reclamação rebatia dizendo que se não tivesse ficado bêbado lembraria tudo tim-tim por tim-tim.
Foi então que segurou o vendedor de cachaça pela goela e disse que ia pagar sim aquela conta, mas quem ia ter de tomar as doses anotadas a mais era ele. E levantou a camisa pra mostrar a peixeira afiada. E por mais que suplicasse, ficasse de joelhos e até chorasse, o rapaz teve de engolir dose a dose. A cada talagada e o olho chegava alumiar...
Depois deixou o boteco aberto, entregue a quem quisesse se esbaldar de casca de pau, e saiu pelas ruas do lugarejo um tanto trôpego, cantando em voz alta música de seresta e dizendo que estava apaixonado pela jumenta do entregador de leite.


  
Poeta e cronista
e-mail: rac3478@hotmail.com
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