SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



quinta-feira, 23 de agosto de 2012

VIAGEM À MINHA TERRA (Penúltima parte)


                                           Rangel Alves da Costa*


Verdadeiramente, não há coisa mais cativante do que ouvir o povo sertanejo conversar, prosear, lançar perante o ouvinte palavras de experiência, lições e ensinamentos. Principalmente quando conhece em profundamente sua realidade, seu cotidiano permeado de tantas lutas e tantas dificuldades, num rosário de esperança e sofrimento.
É uma sabedoria matuta que não há escola que ensine melhor. Lições dos tempos, heranças das gerações que se foram e dos novos saberes que são adquiridos, construídos; um baú de experiências amigas das estações, dos remédios caseiros, das curas milagrosas; um conhecimento profundo de pequenos gestos para vencer os maiores desafios. Na mão calejada, na tez lanhada de tempo, na face enrugada de sol, em tudo uma junção de luta e sabedoria.
Geralmente é um povo fechado, arredio, desconfiado, a não ser que já conheça quem chega para o costumeiro e sempre proveitoso diálogo. Para muitos dos bairros São José e Lídia, e até do centro da cidade e arredores, eu estava ali quase na condição de forasteiro. Alguns, mesmo lembrando-se das minhas feições, ainda assim cutucavam a memória para juntar uma coisa com outra e rememorar minha origem e minha família.
Outros não. De memória mais pródiga, simplesmente chegavam para o cumprimento e o abraço, chamando pelo nome, perguntando sobre a saúde de meu pai, e sempre arrematando que eu andava sumido demais. Reconheço, já falei sobre isso em linhas pretéritas. E do mesmo modo reconheço o quanto dói muitas vezes ser visto como estranho na sua própria casa, ainda que tais núcleos habitacionais estejam tomados de forasteiros.
Mas nada consegue afastar o prazer de sentir a proximidade do autêntico sertanejo, sentir o cheiro de terra valente em cada um, sentir o verbo se derramar como raiz que vai se espalhando na terra. Naquele linguajar conhecido, sem invenção ou prosódia, senti a verdade brotar como a certeza das horas. Talvez dos tempos, de tudo ali. E por isso que parei para falar, para perguntar, para questionar, mas tudo como se estivesse apenas tentando abrir uma cancela para a liberdade de falar daquele povo.
E que boiada depois da cancela aberta, quanta coisa ouvi depois de apenas dar um bom dia. E um ouvir com prazer, com sede, faminto daquelas experiências, sem ao menos perceber qualquer erro de português, qualquer desvio gramatical, qualquer falha de concordância verbal. Ora, a língua é do povo, a linguagem vem naquilo que sabe expressar, e por isso mesmo errado estará aquele que tente encontrar qualquer erro na língua matuta, na linguagem sertaneja.
Daí que pelo São José, dentre outras coisas, ouvi:
“Tudo isso aqui é uma maravia. Vosmicê, menino, bem sabe o quanto aqui só tinha mato, pedra, vereda pra todo lado. Já num era mais mata fechada pruque a cidade já tava avançano demai, mai tomem num era lugar de logo chegar e se construir. Só adespois é que foi seno levantada uma casinha aqui, outra ali, e num dia pa noite já tava isso tudo aqui, quase uma cidade de tanta casa, com rua, luz, igreja, hospitá e tudo mai. Pretinho da perfeitura, do lugar do juiz, daquele outo lugá das aposentadoria mai adiante. Cuma se vê, meu fio, tudo mudou demais. One ante achava preá nagora se bate cum gente pru todo lugar...”.
E de outra pessoa:
“Pra quem morava num lugar abandonado, agora pode dizer que vive com muito mais decença. A maior parte das rua tem calçamento, tem paralelo pra todo canto. O poeirão que existia se acabou, o lamaçal tomem. Inté praça bonita nós já tem. E pra você ver, era ainda muito mais bonita quano o governo veio aqui inaugurar. Mas não demorou muito e uma coisinha ou outra começou despencar, a cair, então os moleque daqui mermo começou a querer esbagaçar com tudo isso aí. Se não tomar logo de cuidado, não demora muito e tá tudo feio e derrubado. Falta vigia pra olhar e até a polícia pra passar aqui de vez em quano. Mas coisa que num vejo de jeito nenhum é polícia. A gente só se alembra quano ouve dizer que um foi preso. Só pra isso, já que pra dar segurança parece mermo que não existe...”.
E de um morador da região do hospital, na outra ponta da cidade:
“Se a vida da gente mudasse tomem como muda as rua carçada, os asfarto e tudo mai, entonce ficava tudo munto mió. Mai não. A boniteza da porta da frente em diante e da porta pra dento o mermo sofimento de sempre. Num há melhoria de vida, num há mai remediação, num há mai comida na mesa, nada. Luxo nenhum, uma coisinha quarqué deferente de jeito nenhum. Quem é mai véio se contenta com a aposentadoria que recebe, quem é mais moço com esse dinherim do governo, mai tudo munto pouco. E o pior é que tem força pra trabaiá num arruma o que fazer de jeito nenhum. Entonce o tempo vai passano e a gente enveieceno e acaba morreno na merma pobeza da famia nos tempo passado. Mai seja cuma Deus quiser...”.
E de uma moradora do Lídia:
“Pelo dia isso aqui é bom demais. Se não fosse a seca a gente até podia dizer que era feliz demais. Com chuva na terra tudo melhora, tem mais emprego, tem mais comida na mesa, a gente tem a chance de comprar uma roupinha nova, um vestidinho pra menina, um sapatinho pro menino. Mas nesse batido de sol a sol é de lascar. A pobreza aumenta a cada dia e o povo tem de acostumar a ficar cada vez mais pobre. E fica mesmo. Veja naquela vendinha quanto é um quilo de arroz ou um pedaço de sabão e volte daqui a um mês pra ver o preço das mesmas coisas. Tá tudo pelos olhos da cara, como se a gente tivesse de ter menos fome, menos sede, vestir o corpo pela metade, fazer segundo o que tiver. E como tudo vai diminuindo, empobrecendo, então mais tarde o sofrimento vai ser muito maior. E você pode andar por aí e olhar, sentir e ver uma outra feição no lugar, sem tanta pedra e tanta areia na porta de casa, mas peça licença e vá entrando de porta adentro. Tão ajeitado aqui fora e tão feio por dentro. Num tô brincando não, mas hoje, em plena segunda-feira, nem todas essas casas vai ter panela no fogo nem comida na mesa. E tudo cheio de menino pra se danar...”.
A voz do povo, os reclamos do povo, a realidade na linguagem sincera do sertanejo. Contudo, uma realidade muito diferente daquela vivenciada a um quilômetro e pouco dali, no centro da cidade, onde os burburinhos sobre a proibição da festa na praça de eventos ainda corriam de boca a boca. Quer dizer, de um lado a preocupação com a vida, com a sobrevivência, com a realidade, e de outro até gente choramingando porque a juíza da comarca havia proibido a bandalheira com o dinheiro público.
E diante de uma realidade social comprovadamente angustiante.
Continua...   



Poeta e cronista
e-mail: rac3478@hotmail.com
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