Rangel Alves da Costa*
Colocou a cadeira ao lado da janela porque sabia que não podia mais evitar sentar ali. Durante muitos anos afastou o velho assento daquele local porque sabia do seu doloroso significado. Era como balançasse a vida desafortunada.
Sentada, não fazia outra coisa que não ficar horas a fio olhando o mundo lá fora. Olhar sem enxergar nada, sem distinguir um objeto sequer. Os olhos ficavam voltados para as paisagens, mas com o pensamento fazendo turbulentas viagens, remoendo o passado revivendo dores, tendo saudades, recordando até do que não havia feito.
Assim, depois que tirou a cadeira do seu balanço esquecido, do seu esquecimento no quarto empoeirado, não fazia mais outra coisa senão ficar sentada o dia inteiro debulhando tristeza, chorosa, numa aflição terrível que nem mais sabia o porquê.
Se alguma coisa acontecesse lá fora era mesmo que nada, pois os olhos só olhavam sem avistar. Se o belo príncipe ali passasse no cavalo alado não seria avistado; a carruagem adornada esperando a princesa também não. Quando a ventania açoitava, o seu rosto chegava a estremecer, a se agitar, os cabelos desalinharem. Mas o olhar nem se movia.
Por diversas vezes o seu irmão e o seu amiguinho caçador passaram adiante, acenaram, chegaram bem pertinho de onde estava, mas era tudo como se ela não estivesse sentindo a presença de ninguém. Chegavam mais perto, faziam gracejos, falavam coisas sérias e nada de ela dar a menor atenção.
Seus pais e sua irmã tanto rondavam a casa como nela entravam, mexiam em cacarecos, derrubavam coisas, faziam tudo para ela despertar daquela dolorosa letargia. Certa vez, a irmã colocou o seu filhinho bem no colo da irmã, balançou a cadeira, cantou uma cantiga de ninar, e o que se viu foi apenas mais uma lágrima escorrendo pelo canto de seu olho.
Aquela casa tão simples, porém tão arrumada e cheirosa, com pão sobre a mesa e Bíblia com página marcada com pena de asa de anjo, e que por isso mesmo há muitos anos havia causado tanto espanto na moradora, nem de longe existia mais. Poeira, pó, folhas secas, garranchos, estranhezas trazidas pelo vento, tudo se acumulava por cima de tudo, pelos cantos e até debaixo das camas.
Passavam anos e mais anos sem uma vassoura se arrastar pelos cantos, sem qualquer limpeza, sem um pano afastando o empoeiramento que se acumulava aos montes, e nesse percurso as coisas continuando numa deplorável normalidade. Quase não comia, quase não bebia. Muitas vezes colocava uma panela no fogo e esquecia por lá. Só restava uma panela, nada mais do que dois pratos, um ou outro talher. O resto já havia sido jogado fora.
Contudo, a higiene pessoal era como se fosse automática, mecânica, tendo de acontecer todo dia. Tomava banho ao levantar, vestia uma roupa limpa, porém a mais comprida e enegrecida que houvesse. E por isso mesmo desde muito já vestia as roupas guardadas de sua falecida mãe. Após o uso, se punha a lavar e estender no varal e depois seguia até sua cadeira de balanço.
O seu anjo da guarda, coitado, nem sabia mais o que fazer. Intimamente, sentia-se quase um anjo ineficaz, impotente, sem ter qualquer força de guarda. E não somente isso, pois se sentia também entristecido por fazer o que estava a seu alcance e não conseguir mudar nada naquela situação. Por consequência, de vez em quando estava pelos cantos chorando, lacrimejando como se aquele infortúnio todo também estivesse recaindo sobre si.
Por isso mesmo se ausentou diversas vezes de sua guardiada para ir lá em cima apresentar relatórios e mais relatórios sobre aquela deplorável situação. E numa dessas vezes disse que se achava impotente demais diante do caso e que rogava uma urgente intervenção perante a sofredora, sob pena de ser tarde demais. O anjo temia o enlouquecimento e depois a morte rápida.
Foi pela ação do anjo que a querubim foi novamente incumbida de descer até ali para tentar resolver o problema. Já conhecia tudo, sabia de tudo. Lá de cima vigiava cada passo da mulher aqui embaixo, sem falar que de vez em quando estava por ali fazendo alguma coisa para tentar alegrar aquele coração de difícil trato.
Foi ela que limpou a casa e perfumou-a, preparou-a para uma nova vida. Estava ao seu lado quando, ajoelhada aos pés do oratório, jurou uma vida em transformação. Porém não pôde continuar fazendo mais se tudo praticado era novamente desfeito. Crisosta prometia e descumpria, jurava a si mesma mudar e no dia seguinte já fraquejava, e assim foi deixando os sentimentos ruins afastar de vez seu poder de reação e acabou dominada pelos fantasmas do silêncio e da solidão.
E agora a querubim sabia que só restava uma saída, que só podia fazer uma coisa. Era a única e última oportunidade de salvação. Ou ela abraçaria a chance ou a quase morte de um dia já muito ido acabaria se confirmando.
Continua...
Poeta e cronista
e-mail: rac3478@hotmail.com
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