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quarta-feira, 1 de agosto de 2012

ESTÓRIAS DOS QUATRO VENTOS: ALI O SILÊNCIO, ALI A SOLIDÃO... (98)


                                                Rangel Alves da Costa*


Verdade é que a agora senhora Crisosta havia adiado demais tudo que podia fazer na vida. Deixando sempre para amanhã, depois e qualquer dia, acabou relegando os sonhos ao plano do esquecimento. Ainda haveria tempo?
Tempo haveria sim. Ainda que tivesse cem anos haveria tempo, ainda que deixasse para amanhã, haveria tempo de fazer depois. Contudo, não só a vontade de fazer, mas a tomada de atitude era essencial. De nada adiantava abrir a cancela sem querer sair, arrumar a mala sem querer partir, fechar a porta sem querer partir.
Quebrou o espelho, jogou fora cada caco de vidro. Depois de tanto tempo sem se ver, jamais imaginava que estava com o semblante tão envelhecido. Não estava velha, não estava carcomida pelo tempo, contudo não pôde deixar de enxergar fios esbranquiçados de cabelos, a perda do brilho e da formosura da pele, os traços fisionômicos já traçando mapas dos tempos idos.
Quebrou o espelho e chorou. Chorou muito. E chorando dizia a si mesma que havia feito tudo para aproveitar mais a vida, para viver melhor, para se alegrar com tudo que houvesse ali rodeando o seu mundo. Disse que não tinha culpa se estava condenada a viver ali e sempre ali, cotidianamente em meio ao silêncio e à solidão. E como não sofrer numa situação diante de uma vida assim, de uma situação dessas?
No lugar do espelho colocou uma fotografia antiga. O retrato mostrava a menina de sorriso querendo voar dos lábios, mas a cor e a moldura estavam nas mesmas condições da retratada naquele momento: sem brilho, sem boniteza, sem vida. No instante seguinte jogou o retrato na parede de barro. Restaram pedaços de barro e da menina.
A partir desse dia, passou mais de ano se esforçando o quanto podia para não desabar de vez, para não retornar a cadeira de balanço ao seu lugar diante da janela e ali se entregar de vez ao silencioso e doloroso sofrimento. Rezava muito, fazia muitas promessas, caminhava pela malhada de Bíblia na mão e lendo em voz alta o que achasse interessante. Difícil de acreditar, mas sentia-se mais confortada ao ler passagens que tratavam de solidão:
“Quantas vezes no deserto o provocaram, e na solidão o afligiram!” (Salmos 77,40).
“Erravam na solidão do deserto, sem encontrar caminho de cidade habitável. Consumidos de fome e de sede, sentiam desfalecer-lhes a vida” (Salmo 106, 4-5).
“(...) as estacas sagradas e os monumentos ao sol não se erguem mais, porque a cidade forte é agora uma solidão, uma morada abandonada como o deserto. Aí vêm pastar os bois e aí pernoitam e comem os seus ramos” (Salmo 27, 9-10).
“Tornaram-na uma solidão e apresentaram-na a meus olhos enlutada e devastada. Desolada ficou toda a terra, pois que ninguém mais a toma a peito” (Jeremias 12,11).
“Assim, dirás: Senhor, fostes vós que declarastes a destruição desta cidade, que se tornaria inabitável para homens e animais, transformando-se em solidão eterna” (Jeremias 51,62).
“Ide, filhos meus! Ide! Quanto a mim, permanecerei na solidão” (Baruc 4,19).
“Dize-lhe: eis o que diz o Senhor Javé: é contra ti que venho, monte de Seir; eu vou levantar a mão contra ti. Farei de ti um deserto e uma solidão” (Ezequiel 35,3).
Solidão, solidão, solidão, Crisosta vivia e respirava a solidão, infelizmente era assim. Como a areia da praia que se amolda ao gosto das ondas que chegam e voltam, como o areal que se forma e se dissipa ao sabor do vento, como o ser humano que se amolda à vontade do tempo, assim era a entristecida mulher cultivada na solidão.
Quando não pensava na solidão lhe afligindo, a imaginação se voltava para o temor de um monte de coisas. Então começava a pensar no futuro, no envelhecimento total, na perda das forças físicas, nas tantas doenças, na cegueira, na morte, na morte, na morte...
E o pior, morrer sozinha e sem ninguém saber, sem uma vela acesa, sem uma prece, sem uma sentinela, sem uma encomendação de alma, sem pranto, sem voz dolorida, sem ninguém velando o seu corpo sem vida, sem ninguém que vestisse a mortalha, que espalhasse água de cheiro sobre o seu cadáver, que desse adeus, que chorasse, que a levasse à cova rasa. Sem cruz, sem dia, sem sétimo dia, sem luto, quase sem morte. Apenas a morte da solidão.
Ao pensar em tudo isso não se negava a chorar. E novamente não sentia mais fome, não tinha vontade de fazer quase nada. Paisagens sem cor, mundo nublado, tudo sem graça, tudo desgraçadamente triste. Tudo novamente tão silêncio entrecortado por soluços e solidão com os próprios fantasmas ao redor.
Até que um dia, já decidida a viver assim mesmo o sofrimento até chegar ao seu fim, foi até o quarto e trouxe a cadeira de balanço para a sala. E colocou-a diante da janela.
Continua...


  
Poeta e cronista
e-mail: rac3478@hotmail.com
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