Rangel Alves da Costa*
Senhor sim, sim senhor. Duvide não, nem seja besta de duvidar. Lá no sertão todo mundo conhece assim, e assim será. É a dádiva hereditária, da riqueza e do poder passando de pai pra filho. É homem, é pessoa de carne e osso, mas com o diferencial de ser senhor. E basta tal reconhecimento para a obediência e a servidão.
Capitão sim, senhor capitão. Não patente militar construída de carreira, mas outorga auferida pelo reconhecimento do poder, da riqueza, da grandeza do homem perante o seu rebanho. E tropa de gente e bicho, num curral de terra e mourão que se alastra sertão adentro em latifúndios sem fim.
Coronel sim, capitão e senhor coronel. Se o generalato estava na governança estadual e federal, o coronelato estava em suas mãos, governante maior da região agrestina, ao qual era concedido o direito de se intrometer com força de mando no executivo municipal, no sempre covarde legislativo e no obediente e temeroso judiciário. Agia com força e poder respaldado pelas forças externas, superiores, a quem agradecia através do voto certo, contado, de cabresto, de família a família.
Dono de gente e bicho sim, e também do que quisesse na sua jurisdição e além, pois sempre havia mais adiante um de igual quilate que baixava a cabeça para os seus desmandos e atrocidades. Mas ao seu redor é que reinava imponente, influente até onde desejasse. Mandonista a nunca chegar, bastando um grito para o humilde sertanejo se ajoelhar a seus pés, bastando um açoite para que os bichos reconhecessem seu dono.
Mas o tal homem, a exemplificação em pessoa da face mais cruel e covarde do coronelismo, do mandonismo e do latifúndio, também era reconhecido por outros aspectos apenas imaginados, sem que ninguém jamais tivesse coragem de abrir a boca pra dizer nada. Assim, era também mandante de tocaias, emboscadas e outras vilezas assassinas; era cobra ruim sempre escondida na beira da estrada esperando o calcanhar do desafeto; era o terror das famílias que tivessem mocinhas virginais; era o chicote no lombo, o lanho na pele, o sangue jorrando.
O pai do seu pai e este, numa linhagem aventureira que foi se embrenhando nas matas e conquistando tudo ao redor à força da violência, do esbulho e da emboscada, foram construindo as desonestas riquezas e cimentando o poder. Um poder matuto, mas que ganhava requinte quando se ouvia falar nas terras sem fim, nos rebanhos a perder de vista, no casarão tomado de jagunços. Dia e noite e aqueles homens armados até os dentes vigiando que chegava e saía, logo deixando a arma à mostra a quem o patrãozinho mandava apenas assustar.
E quando o filho e herdeiro único arrebatou o trono sertanejo, logo cuidou de estabelecer de vez as muralhas de sua fortaleza. Firmou poderosos conchavos políticos, cuidou de arregimentar eleitores para seu cabresto, tornou toda região num curral eleitoral e, por consequência, passou a ter o reconhecimento inabalável de grande senhor, de capitão e coronel, do que quisesse para dizer que ali quem mandava era ele e estava acabado. E não mentia não.
Não foi uma nem duas vezes não, mas a não se contar mais as vezes que colocou o próprio delegado dentro do xilindró, preso, depois de tomar chibatada nas fuças. Bastava que a dita autoridade quisesse ser autoridade demais e intimar um protegido seu que a coisa desandava pro seu lado. Os outros policiais nem se fala, pois havia requerido ao Estado que ele mesmo pagasse do próprio bolso os salários. E pagava quanto queria, aumentando a cota mensal segundo a obediência prestada.
Certa vez mandou convidar o juiz da comarca para um rega-bofe no casarão de sua fazenda principal. Moço novato, inexperiente daquela realidade, chegado ali sem ser devidamente informado como deveria ser sua relação com o coronel dono da região, simplesmente ignorou o convite. E o pior, no outro dia mandou intimação para o poderoso comparecer até sua presença e prestar esclarecimentos sobre algumas denúncias veladas que havia recebido.
Ao chegar ao casarão e dizer a serviço de quem estava ali e para fazer o que, o coitado do meirinho logo foi amarrado com as mãos para trás, tomou uns tabefes e depois foi deixado numa mata fechada distante. O papel da intimação foi guardado cuidadosamente no bolso, e no dia seguinte o coronel entrou com cavalo e tudo no fórum da comarca. Ao ouvir o barulho, a gritaria, parecendo que o mundo estava se acabando, o juiz correu lá do gabinete para ver o que sucedia. Assim que abriu a porta foi recebido com uma taca de couro fuçando-lhe as ventas.
Assustado, sem saber o que fazer, tentou pedir socorro mas da boca não saiu um grito sequer. Amarelou de vez, começou a estremecer igual vara verde, quis recuar, acabou tropeçando no vento e caiu pra trás. E de olhos esbugalhados viu quando o coronel mandou que um de seus cabras lhe abrisse bem a boca para receber o papel da intimação amassado feito bolota. E sujo de estrume de vaca e mijo de cavalo.
Como não bastasse, acenou para que a arma fosse apontada pra cabeça do desvalido magistrado e depois disse que queria ouvir sua sentença naquele mesmo instante. O coitado do homem esbugalhou os olhos e começou a mumunhar com a boca entupida de papel. O coronel então mandou que o jagunço providenciasse pra que ele falasse direito, pois queria ouvir logo sua sentença.
E que morte mais feia, mais terrível, horripilante. Um homem avermelhando sufocado, querendo soltar fumaça por todo lugar, esperneando desesperadamente, até dar o último suspiro. E depois disso, tão cedo um juiz quis botar os pés ali. Mas nem precisava, pois o coronel mandou avisar às autoridades amigas que não precisava mais de magistrado lá não, pois dali em diante ele mesmo seria a justiça. E assim injustiçou até morrer.
E morreu já velho o imprestável do poderoso. Mas não sem antes praticar inúmeras barbaridades, arbitrariedades, violações à inocência de muitas. Desvirginou mais de trinta. Bastava se engraçar de alguma mocinha e mandava um recado pro pai: traga ela aqui tal dia e tal hora. E a bichinha sofria feito uma amaldiçoada nas mãos desumanas e malcheirosas do maldito. Depois era forçada a receber um trocado e jogada na estrada.
Quando era mais novo mandou construir um cemitério numa parte mais afastada da fazenda onde morava. Ali mandava enterrar toda criancinha que nascesse tendo ele como suposto pai. A parteira já era paga pra acabar com a inocente vida depois do primeiro choro. E ela mesma enrolava em panos e trazia o corpo até a sepultura de pouco mais de três palmos. E por lá ainda avistava-se as cruzes solitariamente espalhadas. Uma tristeza.
Um dia, época em que fugia dos remorsos lhe atormentando quando sentava na cadeira de balanço do alpendre suntuoso, e se dirigia em caminhada para dar ordens e não deixar ninguém sossegado, pensou ter avistado uma nuvem bem à sua frente. Mas eram os olhos embaçados, prenúncio do mal-estar que lhe foi tomando o corpo inteiro. Quis chamar alguém, porém não conseguia nem respirar, e logo veio a tontura e uma pontadinha de dor no peito. E o desabamento por cima de um formigueiro.
Debateu-se pelo chão, gesticulou, implorou por ajuda, por uma mão estendida, por socorro. E os olhos olhavam e simplesmente seguiam adiante.
Poeta e cronista
e-mail: rac3478@hotmail.com
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