SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



quinta-feira, 23 de agosto de 2012

MAIS FORTE QUE O SOFRIMENTO (Crônica)


                                                  Rangel Alves da Costa*


Quando a vizinhança soube que aquele homem faminto, estropiado, de mãos ossudas e semblante de sequidão, com o couro da barriga pregado no osso, andava fazendo ao amanhecer e ao entardecer, então o que se viu foi uma revolta geral.
Ninguém podia compreender nem aceitar que mesmo estando todo o sertão esturricado, sem chover há mais de três anos, com a miséria mais feia se espalhando vorazmente por todo lugar, e ainda assim aquele homem todo alvorecer e entardecer se ajoelhava no meio do tempo para agradecer a Deus pelo sofrimento e pelo amanhã vitorioso que não tardaria.
Revoltados com aquela benevolência toda para com a divindade que parecia tê-los abandonado e esquecido, se reuniram para decidir quais providências tomar com relação àquele traidor, àquele que sentia na pele tanta dor e sofrimento e ainda assim parecia viver na fartura, talvez agradecendo a Deus pelas pessoas famintas e sem água, pelos animais agonizantes, pela terra ressequida e sem vingar nem ponta de pedra.
Decidiram então que observariam melhor o que o homem dizia ajoelhado, com as mãos em prece, a boca pronunciando palavras que davam para ser ouvidas. Se fosse confirmado que as rezas, orações e agradecimentos eram mesmo louvando a situação que estava, então o jeito que tinha era expulsá-lo dali. Sem a presença daquele sangue ruim talvez voltassem as trovoadas, as chuvas grossas e fartas, o verdume para encantamento da mataria e dos bichos.
O primeiro que foi escalado para observar o vizinho se pôs cuidadosamente por detrás de uma pedra e ali ficou esperando o homem aparecer para o seu ritual. Não demorou muito e ele chegou, se ajoelhou, tirou o chapéu e colocou-o ao chão, e em seguida começou a dizer as seguintes palavras:
“Todas as coisas que Deus fez e faz são boas, a seu tempo. Para tudo há um tempo, para cada coisa há um momento debaixo dos céus: tempo para nascer, e tempo para morrer; tempo para plantar, e tempo para arrancar o que foi plantado; tempo para matar, e tempo para sarar; tempo para demolir, e tempo para construir; tempo para chorar, e tempo para rir; tempo para gemer, e tempo para dançar; tempo para atirar pedras, e tempo para ajuntá-las; tempo para dar abraços, e tempo para apartar-se. Tempo para procurar, e tempo para perder; tempo para guardar, e tempo para jogar fora; tempo para rasgar, e tempo para costurar; tempo para calar, e tempo para falar; tempo para amar, e tempo para odiar; tempo para a guerra, e tempo para a paz. Assim não duvido que nada é melhor para o homem do que alegrar-se com as coisas que Deus faz”.
O observador não entendeu as palavras do Eclesiastes e foi correndo dizer aos outros que realmente o homem agradecia a Deus por aquela terrível situação, pois aquele deveria ser mesmo o tempo do sofrimento. Para alguns já bastava essa infâmia, já havia chegado o momento de expulsá-lo dali. Porém os mais velhos disseram que seria mais prudente ouvir outros relatos sobre o que ele pronunciava em oração.
E assim, ao entardecer, o outro enviado chegou e se escondeu para ouvir da boca do sertanejo:
“Tanto quanto eu saiba, os que praticam a iniqüidades e os que semeiam sofrimento, também os colhem. Pois o mal não sai do pó, e o sofrimento não brota da terra: é o homem quem causa o sofrimento como as faíscas voam no ar. Assim também eu tive por sorte meses de sofrimento, e noites de dor me couberam por partilha. Mas Deus salvará o pobre pela sua miséria, e o instrui pelo sofrimento”.
Sem entender as palavras de Jó pronunciadas pelo homem, o outro se danou a correr para relatar ao grupo. E foi logo dizendo que ele afirmava em bom som que todo aquele sofrimento era causado pelo próprio homem. Então, estava colocando a culpa neles por tudo aquilo estar acontecendo.
Então resolveram expulsá-lo de sua casa e de sua terra no mesmo instante. Chegaram com tudo já escurecido, mas diferentemente do que ocorria sempre, avistaram o homem ajoelhado debaixo da lua, numa oração tão contrita que parecia entregando a própria vida. E os outros ouviram o que ele dizia:
Cantai ao Senhor, assim como faz a terra inteira sertaneja, anunciando a cada dia a salvação que ele nos trará com as chuvas que chegarão amanhã, com as nuvens que se aproximarão ainda essa noite, sem que o ruído do trovão me deixe mentir”.
Pasmos, espantados com as palavras ouvidas, compreenderam o erro que iriam cometer. E mais atônitos ainda ficaram quando ouviram, ao longe, sons de trovões que antecediam as trovoadas.



Poeta e cronista
e-mail: rac3478@hotmail.com
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