Rangel Alves da Costa*
Nunca vi ninguém reclamar – mas também é difícil encontrar pessoas que demonstrem contentamento - porque a vida lhe traz inusitadas surpresas.
As borboletas são mais amigas de umas pessoas do que de outras. Até jardineiro sabe disso. E muitas vezes não saem das janelas daqueles que gostam, entram pelos quartos, pousam e repousam nas camas, se tornam enfeites para suas cabeças diante dos espelhos.
E nunca vi ninguém alegre porque acontece assim...
Os passarinhos também fazem o mesmo. Não é difícil que deixem sua árvore frondosa e venham fazer seus ninhos num cantinho qualquer do quarto amigo. E procurando causar contentamento, cantarolam cantigas passarinheiras, fazem do umbral da janela um galho seguro e ali gorjeiam felizes.
E nunca vi ninguém alegre porque acontece assim...
Ora o vento, ora a brisa, e até a ventania em sua leveza, tratam determinadas pessoas de modo totalmente diferente. Não assanham, não levantam as saias, não causam arrepios, não levam pra longe as roupas estendidas no varal, não provocam transtornos. Pelo contrário, pois chegam mansinhos, afagam, acariciam, contam segredos bons de além, muito além das montanhas distantes.
E nunca vi ninguém alegre porque acontece assim...
Para alguns, o tempo, os dias, as horas, e tudo que seja percurso de vida, passam de forma muito diferente, sem causar as dolorosas consequências tão conhecidas. Pessoas que a idade não deixa estampado o envelhecimento, mas um aspecto meigo de sabedoria; que os dias não trazem as enfermidades crescentes, mas apenas sinais e avisos para se cuidar melhor; que as horas não são inimigas, estressantes, apavorantes, mas apenas momentos que sutil e levemente vão passando.
E nunca vi ninguém alegre porque acontece assim...
É até difícil saber o porquê, mas muitas coisas da vida acontecem de modo diferenciado perante determinadas pessoas. Passam os dias e os anos com saúde e louvável forma física; as angústias, depressões e patologias comportamentais parecem nem existir; os sonhos são sempre bons; os maus augúrios passam distante; o galo canta para o seu despertar, o sino toca na sua Ave-Maria; abrem a janela ao amanhecer e parece que a vida é que vem para o abraço.
E nunca vi ninguém alegre porque acontece assim...
E na primavera o mais belo ramalhete; da estação, a fruta mais colorida e gostosa, disposta num cesto de vime trazendo arremate de flor do campo; na viagem, a recordação em forma de artesanato; no aniversário, a casa cheia de amigos, os presentes e os festejos; na falta de qualquer coisa, sempre alguém para ajudar, para erguer a mão, para não deixar nada faltar. Sempre tem de tudo e conta com tudo, e no momento que precisar.
E nunca vi ninguém alegre porque acontece assim...
Agora acredite no que vou dizer. Nos lares, recantos e caminhos desta vida são incontáveis as pessoas que vivem recolhidas na suas dores, sofrimentos, angústias, carentes de tudo, principalmente de apoio, de auxílio, de mãos amigas, de carinho, de afeto, de aceitação, de compartilhamento, dos gestos humanos mais simples. E nunca vi nenhuma dessas pessoas entristecidas porque acontece assim.
A menina descalça, a menina buchuda, a menina faminta, a menina linda e tão feia; o menino desnudo, o menino lanhado, o menino marcado, o menino que já nem é mais porque a vida antecipa o seu tempo; a mulher, o homem, o velho, o doente, o abandonado, o carente, o pobre, o miserável, tudo relegado ao mundo do esquecimento, e esquecidos continuam sem maldizer a vida. E nunca vi nenhuma dessas pessoas entristecidas porque acontece assim.
Não sei a sorte é dádiva ou construção, não sei do acaso ou da predestinação, não sei dizer se o merecimento é justo a quem não tem o devido agradecimento. Só sei dizer que muitos não se alegram com nada do que de melhor lhes acontece; enquanto que outros, os tantos outros que não conhecem de presentes nem de cortesias da vida, continuam divinamente gratos por persistirem apenas com a vida.
E nunca vi pessoas tão alegres porque acontece assim...
Poeta e cronista
e-mail: rac3478@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com
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