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segunda-feira, 18 de fevereiro de 2019

O CANGAÇO E OS LABIRINTOS DAS INVERDADES



*Rangel Alves da Costa


Dificilmente um fenômeno histórico e social possa ser tão entremeado de mentiras, suposições e invencionices sem pé nem cabeça como o cangaço. Este fenômeno, além do extraordinário poder de atração e de busca de suas verdades, igualmente possui o nefasto poder de gestar a fantasia do impossível. Quando diz respeito aos fatos e testemunhos antigos, logo acabam indo por terra por novas e poucas confiáveis revelações. E quando as revelações despontam, logo causam o espanto pelos absurdos criados para justificar o inexistente.
Acerca do cangaço, o emaranhado de fatos e versões, falácias e embustes, é tão grande que na peneira da verdade se corre o risco de não cair um só grão. E quando cai, logo é semeado em inúmeras versões sobre o mesmo fato. Muitos pesquisadores parecem viver a sanha da contradita. Não de buscar verdades, mas apenas contestar o dito, e sem apresentar qualquer prova de verdade. Tão somente pelo prazer de ter holofotes sobre si. Com isso, até mesmo estudos sérios e aprofundados passam a correr o risco da descrença. Infelizmente, acostumou-se a tornar o cangaço não uma história, e sim como um conto onde cada um acrescenta um ponto.
Até mesmo os fatos consensualizados como verdadeiros, pois aceitos como inegáveis pela maioria dos estudiosos, não estão livres da deturpação perante as mentiras surgidas. As revelações facilmente afloradas, ao invés de servirem de maior embasamento para o já conhecido desde muito, geralmente se prestam apenas a embaralhar tudo. E assim o cangaço vai se tornando uma história não apenas sem fim, mas principalmente sem pé nem cabeça. E também uma verdade já tão transformada e mentirosamente espalhada que em mentiras vai se alastrando ainda mais.
Os pesquisadores, estudiosos e ditos “donos da verdade”, são os principais responsáveis pelo nebuloso labirinto que se tornou o cangaço. Aqueles que revestem suas obras com extensa bibliografia, nem sempre estão imunes de trazer as inverdades daquelas para referenciá-las como verdade. Por que os outros mentiram, então se torna mentiroso também. Já outros - principalmente escritores de mais estrada - e que recheiam suas obras com “provas testemunhais”, ou seja, através de relatos de pessoas que vivenciaram episódios, nada mais fazem que repassar versões pessoais dos fatos (nem sempre verdadeiras) e quase sempre “puxando sardinha para os seus pratos”.  
É um mundo de insinuações que não acaba mais. Assim acontece perante os livros publicados, os textos divulgados, as palestras em seminários, os ensaios expostos em redes sociais. Ora, aconteceu de alguém dizer (e até publicar um livro) que Lampião morreu em Minas Gerais em idade muito avançada. Muitos são os autores digladiam sobre os acontecidos na Gruta de Angico em 1938. Alguns dizem que Lampião não estava nem no local, outros afirmam que ele não morreu baleado e sim envenenado, outros dizem que nem assim nem assado. E vão contando versões mirabolantes e estapafúrdias.
Cada cangaceiro tem sua história contada de modo diferente. Cangaceiro existe que nasceu em muitos lugares, em anos diferentes e com nomes e apelidos para dar e vender. Dá para acreditar em que e em quem? Somente acerca de Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, existe múltiplas versões sobre a data do nascimento, do batismo e, lógico, também sobre as circunstâncias de sua morte. E sem falar nos esmiuçamentos de sua infância, que por não devidamente conhecida, acaba gerando um mundo de versões desencontradas.
Quando surge a notícia que mais uma biografia vai ser lançada, então se pode esperar que vem muita mentira nova. Fato é que no afã de escrever aquilo que possa ser tida como a maior e mais verdadeira história, o autor acaba produzindo um verdadeiro labirinto de aleivosias e invencionices. Exemplo maior está na recente biografia lançada sobre Maria Bonita. O sucesso maior de “Maria Bonita: sexo, violência e mulheres no cangaço”, de Adriana Negreiros, está precisamente na deturpação dos fatos e na criação de outros verdadeiramente inexistentes.
Mas as deturpações no cangaço não estão somente nos escritores e pesquisadores, pois também nos personagens do seu mundo, naqueles que vivenciaram presencialmente sua saga. Para uma ideia do quanto os fatos são decompostos ou invertidos, alguém já disse que não há um só personagem presente no massacre de Angico, seja volante, cangaceiro ou coiteiro, que não tenha contado uma versão diferente. Com efeito, cada um contou uma história diferente, e sempre se colocando em situação de importância, risco ou valentia maior. Neste sentido, acaso seja perguntado qual volante atirou em Lampião, certamente mais de uma dezena de atiradores aparecerão como o pai da história.
A ex-cangaceira Sila, por exemplo, celebrizou-se muito mais por distorcer fatos e situações, contradizer a si mesma em diversas entrevistas e criar circunstâncias pouco confiáveis em seus depoimentos. Então, indaga-se: por que tantos personagens do cangaço passaram a omitir, inverter situações ou simplesmente mentir? Certamente para se colocar em situação de destaque, para ser mais importante do que realmente foi. Mas nada disso retira do cangaço sua força, seu instigamento, seu poder de verdadeiramente apaixonar.


Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com

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