*Rangel Alves da Costa
Dificilmente um fenômeno histórico e social
possa ser tão entremeado de mentiras, suposições e invencionices sem pé nem
cabeça como o cangaço. Este fenômeno, além do extraordinário poder de atração e
de busca de suas verdades, igualmente possui o nefasto poder de gestar a
fantasia do impossível. Quando diz respeito aos fatos e testemunhos antigos,
logo acabam indo por terra por novas e poucas confiáveis revelações. E quando
as revelações despontam, logo causam o espanto pelos absurdos criados para justificar
o inexistente.
Acerca do cangaço, o emaranhado de fatos e
versões, falácias e embustes, é tão grande que na peneira da verdade se corre o
risco de não cair um só grão. E quando cai, logo é semeado em inúmeras versões
sobre o mesmo fato. Muitos pesquisadores parecem viver a sanha da contradita.
Não de buscar verdades, mas apenas contestar o dito, e sem apresentar qualquer
prova de verdade. Tão somente pelo prazer de ter holofotes sobre si. Com isso,
até mesmo estudos sérios e aprofundados passam a correr o risco da descrença.
Infelizmente, acostumou-se a tornar o cangaço não uma história, e sim como um
conto onde cada um acrescenta um ponto.
Até mesmo os fatos consensualizados como
verdadeiros, pois aceitos como inegáveis pela maioria dos estudiosos, não estão
livres da deturpação perante as mentiras surgidas. As revelações facilmente
afloradas, ao invés de servirem de maior embasamento para o já conhecido desde
muito, geralmente se prestam apenas a embaralhar tudo. E assim o cangaço vai se
tornando uma história não apenas sem fim, mas principalmente sem pé nem cabeça.
E também uma verdade já tão transformada e mentirosamente espalhada que em
mentiras vai se alastrando ainda mais.
Os pesquisadores, estudiosos e ditos “donos
da verdade”, são os principais responsáveis pelo nebuloso labirinto que se
tornou o cangaço. Aqueles que revestem suas obras com extensa bibliografia, nem
sempre estão imunes de trazer as inverdades daquelas para referenciá-las como
verdade. Por que os outros mentiram, então se torna mentiroso também. Já outros
- principalmente escritores de mais estrada - e que recheiam suas obras com
“provas testemunhais”, ou seja, através de relatos de pessoas que vivenciaram
episódios, nada mais fazem que repassar versões pessoais dos fatos (nem sempre
verdadeiras) e quase sempre “puxando sardinha para os seus pratos”.
É um mundo de insinuações que não acaba mais.
Assim acontece perante os livros publicados, os textos divulgados, as palestras
em seminários, os ensaios expostos em redes sociais. Ora, aconteceu de alguém
dizer (e até publicar um livro) que Lampião morreu em Minas Gerais em idade
muito avançada. Muitos são os autores digladiam sobre os acontecidos na Gruta
de Angico em 1938. Alguns dizem que Lampião não estava nem no local, outros
afirmam que ele não morreu baleado e sim envenenado, outros dizem que nem assim
nem assado. E vão contando versões mirabolantes e estapafúrdias.
Cada cangaceiro tem sua história contada de
modo diferente. Cangaceiro existe que nasceu em muitos lugares, em anos diferentes
e com nomes e apelidos para dar e vender. Dá para acreditar em que e em quem? Somente
acerca de Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, existe múltiplas versões
sobre a data do nascimento, do batismo e, lógico, também sobre as
circunstâncias de sua morte. E sem falar nos esmiuçamentos de sua infância, que
por não devidamente conhecida, acaba gerando um mundo de versões
desencontradas.
Quando surge a notícia que mais uma biografia
vai ser lançada, então se pode esperar que vem muita mentira nova. Fato é que
no afã de escrever aquilo que possa ser tida como a maior e mais verdadeira
história, o autor acaba produzindo um verdadeiro labirinto de aleivosias e
invencionices. Exemplo maior está na recente biografia lançada sobre Maria
Bonita. O sucesso maior de “Maria Bonita: sexo, violência e mulheres no cangaço”,
de Adriana Negreiros, está precisamente na deturpação dos fatos e na criação de
outros verdadeiramente inexistentes.
Mas as deturpações no cangaço não estão
somente nos escritores e pesquisadores, pois também nos personagens do seu
mundo, naqueles que vivenciaram presencialmente sua saga. Para uma ideia do
quanto os fatos são decompostos ou invertidos, alguém já disse que não há um só
personagem presente no massacre de Angico, seja volante, cangaceiro ou
coiteiro, que não tenha contado uma versão diferente. Com efeito, cada um
contou uma história diferente, e sempre se colocando em situação de
importância, risco ou valentia maior. Neste sentido, acaso seja perguntado qual
volante atirou em Lampião, certamente mais de uma dezena de atiradores
aparecerão como o pai da história.
A ex-cangaceira Sila, por exemplo,
celebrizou-se muito mais por distorcer fatos e situações, contradizer a si
mesma em diversas entrevistas e criar circunstâncias pouco confiáveis em seus
depoimentos. Então, indaga-se: por que tantos personagens do cangaço passaram a
omitir, inverter situações ou simplesmente mentir? Certamente para se colocar
em situação de destaque, para ser mais importante do que realmente foi. Mas
nada disso retira do cangaço sua força, seu instigamento, seu poder de
verdadeiramente apaixonar.
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com
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