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quinta-feira, 14 de fevereiro de 2019

AS MURIÇOCAS DE POÇO REDONDO E AS CARREIRAS POR MEDO DE LAMPIÃO



*Rangel Alves da Costa


Quase oitenta anos depois, e Poço Redondo ainda vive com medo de um bando dos mais temidos e violentos: as muriçocas cangaceiras. Como logo dito, não mais a cangaceirama aterrorizando os sertões, não mais os valentes do sol fazendo estremecer terra e homem. Mas uma malvadeza que vive a apunhalar e aterrorizar todo ser vivento do mundo-sertão.
Ninguém suporta mais tanta muriçoca. Mais parece um enxame feroz e voraz à cata de sangue a todo custo. Tudo está silenciado e parecendo normal, quando de repente o zunido e a punhalada já estão em cima. Tudo parece um pouco mais sossegado, para no instante seguinte já começar a picada por todo lugar. Dez, vinte, cem, mil, milhões de muriçocas atacando de uma só vez.
O que se tem no momento, com toda a população fechando suas portas e se entocando debaixo dos panos ao anoitecer, mais parece com os episódios chamados de “As Carreiras” e descritos por Alcino nos seus livros sobre o cangaço. Segundo o saudoso escritor sertanejo, sempre que surgiam rumores sobre a aproximação do bando de Lampião, ou mesmo que os cangaceiros estavam pelas redondezas, então a maioria da população ajuntava em correria, na fuga desembestada, em direção aos matos, aos catingueiramentos fechados, às beiradas do São Francisco, pelos caminhos e veredas de Serra Negra ou qualquer lugar que pudesse servir de abrigo.
Era o medo, o temor, o pavor. Tinha gente que logo via a acabação do mundo se aproximando. Tinha gente que ficava em tamanha polvorosa que desmiolava no passo seguinte, ou seja, ficava feito doido de pedra, querendo subir pra perto do sol e cavando buraco na terra seca para encontrar abrigo. Nesse mundo revirado, gente que levava tudo que podia recolher, gente que deixava tudo para trás e queria apenas salvar sua pele. Outros deixavam panelas no fogo, urinóis pela metade, e corriam com calças vestidas em uma só perna, anáguas levantadas. Contam dos calções derreados até o joelhos e até da nudez em correria em meio aos tufos de mato.
O medo era tamanho que tinha gente indo em direção a Serra da Guia quando pensava estar seguindo rumo a Bonsucesso. Dizem que Leotério voltou do caminho pra buscar uma carta deixada por Rosamunda, e o que encontrou depois de abrir a porta foi um cangaceiro com cara de fome. E cangaceiro com cara de fome não era coisa boa de encontrar não. Então o coitado do Leotério, de susto e medo, bateu as botas na hora. A verdade é que Poço Redondo ficava praticamente vazio por medo da cangaceirama.
E agora, em pleno 2019, tem que viver, conviver e suportar, o cangaço da muriçoca ou, como diz Manoel Belarmino, o banditismo com zunido e asas. Deveras, está mesmo insuportável. Com cada cidadão metido a soldado da volante logo após o anoitecer, o que se fala é em tocaia, emboscada, ataque de todo lado, na tentativa de dizimar o cangaço muriçoquento. Mas não tem jeito. Não adianta entrar embaixo de mosquiteiros, encobrir-se dos pés à cabeça, esconder-se em banheiros, entocar-se debaixo de camas. A muriçoca ataca de todo jeito.
Uma situação desesperadora. A muriçoca não dá trégua e avança sem piedade. Quando o sujeito menos espera e o zunido horripilante (como uma investida de mosquetão) já está em cima. E já é tarde demais para se defender. Tem gente que já vive chorando de tanto tapa que dá em si mesmo. A muriçoca ataca de um lado e ele dá um tapa, mas no instante seguinte já está do outro lado, então vai outro tapa. E são mais de dez tapas em menos de um minuto. Numa situação assim, dolorosa e desesperançada, o choro é inevitável. Teve um que desmaiou com um soco que deu na própria cabeça. Ele caído e as muriçocas galhofando por cima.
O problema da muriçoca está tão grave que a população já implora pela chegada da Força Nacional para o devido combate. Somente homens bem armados e preparados para dar fim a esse banditismo muriçoquento não só noturno como de toda hora. Ou então recorrer a uma solução bem mais simples e que talvez surta um bom efeito: que tal, senhor prefeito, providenciar a passagem de caminhões fumacê pelas ruas e vielas da cidade?
É bom lembrar que o cangaço de verdade não acabou após um feroz combate, e sim após um ataque de surpresa da força volante. E as muriçocas de Poço Redondo, folgadas demais que são, certamente estão pensando que as atacam apenas com tapas e socos. Então chegou a hora de surpreendê-las. Fumaça nelas. Será tido e queda. Ou se faz assim ou o que logo se terá será uma multidão correndo, tresloucada e desembestada, aos desvãos da noite para fugir dos ataques muriçoquentos.


Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com

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