SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



domingo, 24 de fevereiro de 2019

O RIO, O MENINO E O BARQUINHO



*Rangel Alves da Costa


Avistei no facebook, em postagem de um amigo ribeirinho do Velho Chico, uma bela e significativa, senão simbólica e poética, fotografia: uma criança brincando com um barquinho na beirada do Rio São Francisco. O cenário é Curralinho, povoação beiradeira no município sergipano de Poço Redondo.
Ao fundo da fotografia, após a curva das águas, as silhuetas dos bares e casarios, as margens arenosas que vão se estendendo até com as serras e montes se encontrarem. Um rio que corre e escorre entre serras e alturas nos carrascais sertanejos. Mais de perto, bem no rasinho do beiral das águas, o menino olha admirado para um barquinho. Um cenário primoroso e deslumbrante.
Nas cores predominantemente verde, vermelha e branca, o barquinho possui até nome de batismo na lateral de sua proa. Embarcação são-franciscana tem de receber nome, identidade, como que para ganhar vida própria: Tubarana, Piaba, Ribeirinha, Senhora das Águas, e muito mais. No barquinho perante o menino, não há como distinguir o nome, mas algo assim como Esperança do Rio.
Sim, Esperança do Rio, e esperança tanto no menino como na sobrevida das águas que ainda vão se tornando muitas mais adiante, após apenas encobrir parte daquelas pequeninas pernas. Percebe-se a ausência de outros barcos pelos arredores. Talvez um ou outro aportado ao longe. Não são avistados os barcos e as canoas de pescadores. Não são avistadas aquelas embarcações que sempre estão sonolentas ao remanso das margens. Apenas o menino, o barquinho e o início das águas.
Mais além, o leito espelhado pelo sol e contando suas histórias ao longo de seu caminho, pois seguindo adiante entre curvas e curveados, simplesmente seguindo e deixando para trás tantas histórias do mundo ribeirinho. E mundo ribeirinho não é propriamente um mundo, mas uma existência entranhada no corpo e na alma. Pulsa a seiva da vida na alma de sua gente. Há no mundo ribeirinho uma veia alongada onde escorre o mesmo pulsar de vida do rio e do homem. São inseparáveis. O rio é o homem, e o homem é o rio.
Mas as águas ainda existentes vão contando suas histórias, seus antepassados, suas raízes. Histórias de um imenso livro relatando pujanças e farturas, grandezas e alegrias, mas também tristezas e sofrimentos, dores e aflições. Na fotografia, ali mesmo onde o menino volta seu olhar ao seu brinquedo, uma história que só pode ser contada com lágrimas nos olhos. Não é fácil ao ribeirinho de hoje recordar aquelas margens repletas de embarcações e os seus moradores acorrendo com redes e tarrafas à mão, ou levando malas e encomendas para o transporte. Logicamente que não naquele mesmo local, pois as águas muitas puxavam as margens já para a proximidade das calçadas altas, mas as mesmas margens de onde saíram e chegaram os vapores, as chatas, os barcos e as canoas. As mesmas margens que avistavam, ao mesmo tempo espantadas e agradecidas, o surgir das carrancas ao frontal das embarcações. Os irmãos Ciano e Valter com sua canoa ancorada nas proximidades da grande árvore, da figueira secular que contava toda a história do lugar. Seu Aloísio cuidando para que o seu barco não se desprendesse e navegasse sozinha. Diziam que o Nego-d’água cuidava de desprender as amarras para que os barcos sumissem. Ribeirinhos e mais ribeirinhos, pescadores e mais pescadores. Fernando com sua majestosa embarcação e seguindo ora pelos lados de Entremontes e mais adiante ora pelos lados de Bonsucesso e Pão de Açúcar e mais além. Hoje Danúbio faz longa caminhada até chegar a seu barco nos arredores de onde o menino observa o seu brinquedo. Hoje, para o encontro com as águas será preciso caminhar até mais abaixo, aonde o leito vai passando magro e entristecido. Noutros idos, ali das calçadas altas, os olhares logo divisavam todo o volumoso espelho d’água que corria em festa grande. Mas assim mesmo a vida: vida e morte, chegadas e partidas. Resta-nos a esperança na fotografia do menino. Que amanhã, quando adulto já estiver, quem sabe se o seu passo não vai chegar às mesmas margens do Velho Chico e os seus olhos novamente se encantarem com a pujança de vida e de água que suportou as agruras do tempo e se impôs com permanente beleza. Ou, como num dizer de São Francisco: Senhor, fazei destas águas um instrumento de vossa grandeza, velando sempre por sua existência e alimentando a vida de seu povo, o povo do rio!


Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com

Nenhum comentário: