*Rangel Alves da Costa
Avistei no
facebook, em postagem de um amigo ribeirinho do Velho Chico, uma bela e
significativa, senão simbólica e poética, fotografia: uma criança brincando com
um barquinho na beirada do Rio São Francisco. O cenário é Curralinho, povoação
beiradeira no município sergipano de Poço Redondo.
Ao fundo
da fotografia, após a curva das águas, as silhuetas dos bares e casarios, as
margens arenosas que vão se estendendo até com as serras e montes se encontrarem.
Um rio que corre e escorre entre serras e alturas nos carrascais sertanejos.
Mais de perto, bem no rasinho do beiral das águas, o menino olha admirado para
um barquinho. Um cenário primoroso e deslumbrante.
Nas cores
predominantemente verde, vermelha e branca, o barquinho possui até nome de
batismo na lateral de sua proa. Embarcação são-franciscana tem de receber nome,
identidade, como que para ganhar vida própria: Tubarana, Piaba, Ribeirinha,
Senhora das Águas, e muito mais. No barquinho perante o menino, não há como
distinguir o nome, mas algo assim como Esperança do Rio.
Sim,
Esperança do Rio, e esperança tanto no menino como na sobrevida das águas que
ainda vão se tornando muitas mais adiante, após apenas encobrir parte daquelas
pequeninas pernas. Percebe-se a ausência de outros barcos pelos arredores.
Talvez um ou outro aportado ao longe. Não são avistados os barcos e as canoas
de pescadores. Não são avistadas aquelas embarcações que sempre estão
sonolentas ao remanso das margens. Apenas o menino, o barquinho e o início das
águas.
Mais além,
o leito espelhado pelo sol e contando suas histórias ao longo de seu caminho,
pois seguindo adiante entre curvas e curveados, simplesmente seguindo e
deixando para trás tantas histórias do mundo ribeirinho. E mundo ribeirinho não
é propriamente um mundo, mas uma existência entranhada no corpo e na alma.
Pulsa a seiva da vida na alma de sua gente. Há no mundo ribeirinho uma veia
alongada onde escorre o mesmo pulsar de vida do rio e do homem. São
inseparáveis. O rio é o homem, e o homem é o rio.
Mas as
águas ainda existentes vão contando suas histórias, seus antepassados, suas
raízes. Histórias de um imenso livro relatando pujanças e farturas, grandezas e
alegrias, mas também tristezas e sofrimentos, dores e aflições. Na fotografia,
ali mesmo onde o menino volta seu olhar ao seu brinquedo, uma história que só
pode ser contada com lágrimas nos olhos. Não é fácil ao ribeirinho de hoje
recordar aquelas margens repletas de embarcações e os seus moradores acorrendo
com redes e tarrafas à mão, ou levando malas e encomendas para o transporte.
Logicamente que não naquele mesmo local, pois as águas muitas puxavam as
margens já para a proximidade das calçadas altas, mas as mesmas margens de onde
saíram e chegaram os vapores, as chatas, os barcos e as canoas. As mesmas
margens que avistavam, ao mesmo tempo espantadas e agradecidas, o surgir das
carrancas ao frontal das embarcações. Os irmãos Ciano e Valter com sua canoa
ancorada nas proximidades da grande árvore, da figueira secular que contava
toda a história do lugar. Seu Aloísio cuidando para que o seu barco não se
desprendesse e navegasse sozinha. Diziam que o Nego-d’água cuidava de
desprender as amarras para que os barcos sumissem. Ribeirinhos e mais
ribeirinhos, pescadores e mais pescadores. Fernando com sua majestosa
embarcação e seguindo ora pelos lados de Entremontes e mais adiante ora pelos
lados de Bonsucesso e Pão de Açúcar e mais além. Hoje Danúbio faz longa
caminhada até chegar a seu barco nos arredores de onde o menino observa o seu
brinquedo. Hoje, para o encontro com as águas será preciso caminhar até mais
abaixo, aonde o leito vai passando magro e entristecido. Noutros idos, ali das
calçadas altas, os olhares logo divisavam todo o volumoso espelho d’água que corria
em festa grande. Mas assim mesmo a vida: vida e morte, chegadas e partidas.
Resta-nos a esperança na fotografia do menino. Que amanhã, quando adulto já estiver,
quem sabe se o seu passo não vai chegar às mesmas margens do Velho Chico e os
seus olhos novamente se encantarem com a pujança de vida e de água que suportou
as agruras do tempo e se impôs com permanente beleza. Ou, como num dizer de São
Francisco: Senhor, fazei destas águas um instrumento de vossa grandeza, velando
sempre por sua existência e alimentando a vida de seu povo, o povo do rio!
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com
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