SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



domingo, 28 de abril de 2013

O MAR NO TELHADO (Crônica)


Rangel Alves da Costa*


Toda vez que entro no meu quarto e deito na cama pra dormir, eis que surge o mar lá em cima, no meu telhado. Coisa estranha de acontecer, mas acontece. Deitado, antes mesmo que olhe para o alto e já ouço o murmurejar das águas, as gaivotas voando, aqueles sons de distâncias molhadas. O mar, imenso mar...
Esteja chovendo, barulhando no telhado na cantiga do pingo grosso, ou o silêncio tomando conta de tudo, nada importa, pois o mar sempre vai estar lá em cima. Com luz acesa ou apagada, nenhuma diferença faz. As telhas balançam no alto, as marés avançam e recuam, chego a avistar um barquinho solitário sem direção.
E ouço, como entrando pela janela entreaberta, uma cantiga dolente de marinheiro, apenas voz que se mistura às águas sopradas de brisa: “iá iê, iá iê, oní onã, iá iê, oní onã, nê onã, iá iê, lê lê ô, iê oní onã, iá lê onâ, ê ô, oní onã, onã nã nã naiê, ê ô...”. Porto, a mesma cantiga do mar de Gabriela.  
Talvez eu saiba por que sempre acontece assim. Ao deitar na cama, nunca virava de lado nem procurava fechar logo os olhos para adormecer. Muito menos jogava cobertas sobre o meu rosto. Posicionava-me virado para o alto e de olhos abertos começava a imaginar, a pensar num monte de coisas.
Contudo, diferente do que muitos fazem, nunca levei problemas para serem pensados ou resolvidos em cima da cama, antes de adormecer. E não porque os momentos que antecedem o sono e o dormir não merecem ser misturados com dissabores e aflições. São apropriados, isto sim, para inusitadas viagens no pensamento.
Por muito tempo misturei pensamentos. Um dia me via num castelo distante, num tempo mais distante ainda, olhando do alto da torre a aldeia campesina mais adiante. Noutro dia me via cortando caminhos, entrando em curvas, subindo e descendo montanhas, em busca de uma igrejinha inexistente. Assim percorri o mundo, fui quase tudo.
Mas tudo mudou depois que comecei a pensar no mar. Olhava pra cima e era como se estivesse avistando a imensidão de águas. E o mar grandioso me surgia com os seus sons, seus mistérios, seus caminhos, seus habitantes, suas incertezas e aflições. Mas também o mar de chegada e de contentamento. Por isso que já me vi marinheiro, barco vazio, pedra de cais, gaivota e vento.
Da beira do mar, apenas avistando o que infinitamente avança adiante, caminho pela areia, sento na pedra grande, molho os pés nas águas misteriosas. Mas tudo triste, solitário, apenas ouvindo o barulho das águas. Penso no castelo da sereia que dizem morar ali, penso na ilha invisível que dizem existir adiante, penso no barco que toda noite chega vazio na beira do cais. Encontro uma flor estendida na areia e depois já estou dormindo.
Fico imaginando em quantos portos, quantos cais e quantas margens aquele mar que avisto desembarca. Chego a ver gente correndo, trazendo cestos e caçuás para encher de frutas maduras chegadas no barco. Caixotes de peixes, caranguejos e frutos do mar são derramados em imensos vasilhames para transporte. Uma bela moça, trazida de uma ilha distante, é descida estendido numa maca. Adoeceu depois de ser beijada pelo vento do entardecer.
Outras vezes lá estou eu navegando sem rumo. Já em alto mar, com o vento da tarde açoitando veloz, nada vejo ao redor que me tire da solidão. Procuro avistar uma revoada, ou apenas um pássaro, mas nada surge no horizonte. Apenas nuvens negras, pesadas, que lentamente caminham na minha direção. Uma tempestade se aproxima.
Mas não tenho medo, não temo nada que venha desse mar. Mesmo que a ventania e a chuva forte ameacem virar o meu barco, ainda assim não tenho medo. Estou com sono demais e tenho certeza que adormecerei antes que a tempestade me alcance. E adormecido por certo me chegará um sonho desembarcando numa ilha. E encontrarei seu sorriso e braços abertos para o carinhoso afago. Meu amor chegou, ouvirei.
E na noite seguinte, na hora de dormir, novamente encontrarei o meu mar no telhado. Mas amanhã vou apenas escrever um poema na areia. E deixar que a saudade seja levada para bem longe, nas distâncias das águas do mar.
  

Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

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