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quarta-feira, 7 de dezembro de 2016

SOBRE SAUDADES E LOBOS


*Rangel Alves da Costa


A saudade é mamífera, é animal, grunhe, uiva, berra, chilra, muge, lancina, lateja. A saudade é assim um grito de dor saído de uma incompreendida voz.
A saudade tem patas, garras afiadas, caninos vorazes, bocas sedentas, olhos brilhosos, cheiro de bicho, de bicho feroz. Mas também de bicho acuado na armadilha de si mesmo.
Saudade no telhado no meio da noite, nos esconderijos enegrecidos da noite, nos picos e colinas da escuridão, nos descampados sombrios e entre os tufos que escondem as dolorosas realidades.
A saudade é gato, é boi, é vaca, é cachorro, é coruja, é raposa, é mãe-da-lua, é gavião, é carcará, é lobo. Principalmente lobo e sua saudade noturna, fechada, tristonha.
A saudade é lobo de estepe, é lobo uivante, é lobo no mais alto da montanha, soltando seu grito lamento em direção às distâncias enluaradas. E somente ele sabe a saudade sentida.
A saudade é lobo em meio à escuridão, nos negrumes escondidos, nos altares dolorosos da mata silenciosa. É aí que seu uivo brada a saudade mais medonha que possa existir.
Alguém já ouviu o lobo uivando no meio da noite? Alguém já se aproximou de seu pedestal de tristeza e solidão para sentir de perto sua dor lancinante? Alguém já mirou naquele olhar profundo, naquela boca cheia de garras trêmulas, naquela posição solenemente angustiada?
A saudade do lobo é a mais terrível saudade. Não uiva por que assim acostumou quando a noite cai, não berra por que está fisicamente doente, não ulula anunciando aos demais sua presença. Não.
Seu uivo é de dor sentimental, da alma, do pensamento. Querer ter e não ter, ou ter e se prostrar na distância, ou simplesmente não ter nada além de uma desesperança de jamais poder sentir a presença.
Por isso mesmo que o lobo age assim no meio da noite. Cantando sua saudade tanta, bradando sua saudade grande, chorando sua solidão. Enquanto a lua desce o uivo sobe, se espalha, luzindo na noite seu anúncio de existência.
Por isso que o lobo uiva. Uiva, grita, berra, brada de saudade. Basta sentir na entonação do seu uivo, num acorde que começa baixo e vai se alongando, para saber que não é sem motivos que tamanha dor ecoa com tão intensa profundidade.
Vejam a fotografia do lobo noturno uivando no alto da montanha. Os olhos apertados, fechados, parecem vertendo lágrimas. A boca aberta, os caninos pontudos, o nariz voltado ao alto, tudo emoldurando uma angústia sem fim. E na sua posição, como se no alto estivesse para ser melhor ouvido, afeiçoa-se a uma sombra que desesperadamente quer voar.
Mas os lobos não são apenas os lobos. O homem é o lobo de sua solidão, o homem é o lobo de sua angústia, o homem é o lobo de seu desalento. E animal que sofre, que chora, que se angustia e padece de doer na alma.
Homem na dor do lobo, lobo no sofrimento humano. O homem uivando na sua noite, subindo na sua montanha do passado e de relembranças, para soltar sua voz mais triste, que é aquela silenciosa e torturante. A voz de uma saudade que faz gritar por dentro igual o lobo.
Quantas montanhas e estepes ao redor do homem. No quarto fechado, na janela entreaberta, perante as vagas da noite, mirando a lua e as estrelas, ou simplesmente de olhos fechados e apertados de dor, o homem uiva.
Noites de ruas vazias, quartos fechados e janelas entreabertas. E os uivos anunciando as saudades. Mas ninguém pode ouvir, pois cada um sentindo a força de seu próprio bradar, por dentro, no âmago, na exata dimensão de sua solidão.
Tudo sei sobre saudades e lobos. Sou um solitário lobo. E ainda ouço o meu uivo na solidão da noite passada.


Escritor
Membro da Academia de Letras de Aracaju
blograngel-sertao.blogspot.com

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