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domingo, 11 de dezembro de 2016

CARTA AO VELHO ESCRITOR


*Rangel Alves da Costa


Bom dia, velho amigo, como vai? Desculpe-me por chamá-lo de velho, mas é que leio seus livros desde tanto tempo que já tenho como costumeira nossa relação.
Desculpe-me ainda por endereçá-lo a presente missiva sem conhecê-lo pessoalmente. E principalmente por chamá-lo de amigo, numa intimidade até evitável.
Mas reconheço como amigo aquele que me faz bem através do que escreve. Por isso mesmo o tenho como um verdadeiro e cordial amigo, com quem dialogo através dos livros.
Não se sinta ofendido, mas tenho que confessar coisas que podem não agradar. Por mais que possa negar, acredito seriamente que todo personagem sofrido de seus romances espelha o próprio autor.
Quer dizer, você se esconde em cada personagem sofrido, marcado pelas durezas e difíceis circunstâncias da vida, para se autorretratar. Só muda o nome, mas você em todos eles, e seja homem ou mulher.
O problema, meu amigo, é que todos, absolutamente todos os seus personagens, carregam em si um fardo muito pesado de sofrimento. Significa dizer que suas dores são tamanhas que precisa dividir suas angústias e aflições entre tantos.
Com relação a este aspecto, ouso dizer que uma escritora chamada Clarice Lispector fez o mesmo, diferenciando-se somente pelo fato de que ela, até pessoalmente, jamais negou realmente sentir as aflições transcritas em suas páginas.
E mais. A originalidade maior de Clarice se deve ao fato de narrar seus sofrimentos, angústias, desilusões, desesperanças, como se estivesse num divã onde o leitor é o seu pasmado analista.
E por que acredito que esteja espelhado em cada personagem? Muito fácil dizer. Recorda que o seu Capitão Bendegó, já cansado da luta e deitado numa rede, fica repetindo palavras ao vento que passa?
O segredo está nas palavras utilizadas. Não vou mais sofrer como Strauss sofreu, não vou mais chorar como Erônia chorou, não vou mais permitir que o punhal avance sobre mim como fez Zió...
O problema é que tanto Strauss como Erônia e Zió, e tantos outros mais, estão todos presentes em outros livros seus. E todos eles traduzindo o próprio autor nas suas angústias, bem ao modo de Clarice Lispector.
Desculpe, mas tenho que dizer. Por que não há em seus livros nem um só assassino, um só bárbaro e cruel, um só desequilibrado mental, psicopata ou coisa parecida? Por que você nunca se ajustou a tais características. Nunca matou, nunca violou além de si mesmo.
Entendeu, meu velho amigo? Em cada livro, em cada personagem, sua descrição é tão fiel de si mesmo que não haveria como forjar outras situações. Apenas seres angustiados, aflitos, sofridos, desesperançados. E todos você.
Talvez outros leitores sequer tenham imaginado assim. Mas eu, curioso como sempre fui, saí das páginas de seus livros em busca de informações acerca de sua pessoa, enquanto escritor silencioso, recluso, de viver solitário. E quais os motivos para tal? As angústias.
Confirmo o que digo. No desfecho de O Lobo, no parágrafo final, há o seguinte: O lobo estava faminto, sofrido, ávido por qualquer coisa. Mas não quis mais ir atrás de qualquer presa ao redor. Uivou pela última vez, o mais alto que pôde, e depois se recurvou ao chão. Para morrer.
Relembra desta bela escrita ao final do livro? Pois bem. Li numa entrevista dada por você que se sentia como um velho lobo que precisar uivar pela última vez e depois fechar os olhos. Qual a relação desses dois fatos, do livro e da vida?
Mas que não uive agora, meu bom amigo. Permaneça no alto da montanha. Mas que não uive agora. E muito menos fechar os olhos. Que os olhos dos lobo, ainda que entristecidos e lacrimejantes, mirem além da noite para encontrar a lua.
Reconheço o velho lobo solitário que habita seu monte. Lobo uivante, triste, tendo a si mesmo como presa. Mas faça como ao final de O Diário da Montanha: E do alto avistou o mundo. Que coisa mais bela era aquele mundo. Foi então que pediu permissão a Deus ser o dono daquilo tudo.
E depois desceu a montanha para se apossar da grandeza da existência jamais reconhecida em seu viver. Um grande abraço de seu cordial leitor.


Escritor
Membro da Academia de Letras de Aracaju
blograngel-sertao.blogspot.com

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