SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



quinta-feira, 3 de outubro de 2013

PALAVRAS SILENCIOSAS – 394


Rangel Alves da Costa*


“Tenho uma palavra e um grito...”.
“Tenho uma calma e um espanto...”.
“Sou vulcão flamejante e mar transbordante...”.
“Sou calmaria e vendaval no mesmo leito azul...”.
“Corro sem sair do lugar...”.
“Sonho acordado e tenho pesadelos...”.
“Choro e sorrio na mesma face...”.
“Sou pecado e inocência diante do mesmo ato...”.
“Não sou o que dizem e sou o que não sabem...”.
“Sou e não sou e também não sou nada...”.
“Um pássaro alegre e um gavião furioso...”.
“Uma flor escondida por trás do espinho...”.
“Uma lua cheirando a calor de sol...”.
“Uma saudade querendo esquecer...”.
“O que chega sem ter partido...”.
“O que foi sem nunca ter sido...”.
“O sermão e a palavra mais torta...”.
“O cálice quebrado e cheio de vinho...”.
“Da água a pura aguardente...”.
“O leito de rio que volta ao mesmo lugar...”.
“Uma sombra mais visível que o dono...”.
“A folha rasgada explicando tudo...”.
“A serpente emplumada acima do pedestal...”.
“Coração sacrificado em ritual mais antigo...”.
“Sou canto e cantiga e melodia...”.
“Valsa na nuvem carregada de chuva...”.
“Um lábio depois do beijo...”.
“Um cigarro aceso na hora do banho...”.
“Como sou nada e sou tudo...”.
“Ventania soprando mansinho...”.
“Retrato que fala e tez que emudece...”.
“A boca com um céu estrelado...”.
“O lenço molhado esquecido na estação...”.
“O apito do trem que nunca desponta...”.
“A lágrima e o barco sem rumo na vida...”.
“O que ama sem encontrar amor...”.
“O que tem amor sem encontrar quem ame...”.
“Como sou tudo e sempre nada...”.
“A nudez com vergonha do corpo...”.
“O terço correndo os dedos...”.
“Uma fé que tanto preciso ter...”.
“Pois sou ouro e cobre envelhecido...”.
“De lata enferrujada e ornada de diamantes...”.
“Sou casto e tão amante...”.
“Sou o outro quando não há mais ninguém...”.
“A vela que o vento insiste em apagar...”.
“O remédio amargo que finge curar...”.
“A bandeira branca destroçada pela guerra...”.
“A cruz dos mortos e o sinal da vida...”.
“Ah, eis que tanto sou...”.
“Tanto sou sem jamais ter sido...”.
“E o que serei então...”.
“Senão aquilo que sou...”.
“E ainda não reconheço...”.
“Porque sequer me conheço...”.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

quarta-feira, 2 de outubro de 2013

A CASA, O TEMPO, O VENTO


Rangel Alves da Costa*


Nunca mais a ventania chegou esvoaçando as roupas no varal, derrubando o jarro com flores de plástico em cima da velha e rústica mesa, fazendo balançar a gaiola vazia de passarinho.
Nunca mais ventania para levantar saias nem espanar chapéus. Ela chega sim, faz seu percurso de todo entardecer, mas agora encontrando pela frente apenas a porta e a janela abertas, ecoando lá dentro como angustiosas palavras.
A casa, agora abandonada e esquecida no meio do tempo, e onde até a ventania sente saudade de outros idos, é a mesma moradia que outrora acolheu o destino de tantos e mais tantos que um dia avistaram sua malhada. Lar fincado na humildade, pois seus moradores  nunca passaram de simples sobreviventes nos escondidos sertanejos, nunca deixou de dar acolhida a todo viajante que por ali passava.
Num tempo de veredas abertas como estradas pelos sertões, e em cujos caminhos pedregosos e espinhentos a vida necessariamente tinha de passar, não havia um só caminhante ou viajante que não avistasse ao longe a moradia, não chegasse diante de sua cancela e não batesse à sua porta.
Ora, ali era passagem certeira para quem quisesse ir a qualquer lugar. Ou cortava aquelas veredas perigosas ou tinha de caminhar por dentro da mataria, dividindo o passo com todo tipo de bicho e dificuldade. Contudo, o mais perigoso era encontrar bandos de volantes ou de cangaceiros nos escondidos das pedras grandes.
Por isso mesmo que não havia outro jeito senão seguir pela estrada que passava diante da casa. E única moradia em mais de cinco quilômetros de lado a outro. Quase um oásis na aridez sertaneja e milagroso refúgio para todo aquele que batesse à porta implorando dois minutos de descanso, uma cuia d’água, uma xícara de café.
Vendedores ambulantes vindos das distâncias do mundo, quase perdidos em meio aquele desconhecido, ali chegavam cansados, famintos e desesperançados, implorando por tudo na vida que os donos da casa aceitassem receber dois cortes de pano de chita em troca de um prato de qualquer coisa e uma caneca de água de moringa.
Gente desconhecida, vaqueiros de outras paragens, viajantes a negócio, emissários de coronéis e poderosos, todos, indistintamente, enchiam os olhos de brilho depois da curva da estrada e da maravilhosa visão daquela casa. E só faltavam enlouquecer se sentiam pelo ar o cheiro forte do café torrado ou do cuscuzeiro espalhando aquele cheiro inebriante. E cuscuz de verdade, de milho ralado mesmo.
Foi nessa moradia que Lampião e seu bando se amoitaram, exaustos e famintos, certa feita. O Capitão, avistando umas cabeças de bode pastando ao redor, mandou que derrubasse um e depois do almoço servido dissesse quanto era a conta, pois tinha prazer em retribuir quem lhe servia em momento de tão grande precisão.
E foi nessa ocasião que se deu a conhecida história da reclamação de um dos cangaceiros acerca da comida sem sal e a ação exemplar levada a efeito pelo Capitão. Faminto como estava, mais de dois dias sem comer nada que prestasse, e o cabra ainda se achou no direito de dizer que a carne de bode estava sem sal.
Então Lampião chamou o dono da casa e perguntou-lhe se ainda tinha sal na despensa. E homem voltou da cozinha trazendo um pacote quase cheio. Em seguida o mal agradecido foi chamado à presença do chefe e deste recebeu a ordem de se fartar de todo aquele sal colocado diante de suas fuças. E o homem se salgou todinho por dentro. E sem poder reclamar um tantinho assim.
Muitas outras histórias se passaram desde a cancela daquela casa. Pela estrada e seus viajantes chegavam as notícias, as encomendas e as surpresas. Sabiam das guerras quando estas nem mais existiam; tomavam conhecimento de mortes depois que ninguém pranteava mais o falecido; viviam mais das notícias do vento do que mesmo da realidade existente muito além.
O último visitante foi um caixeiro viajante. O almofadinha ultrapassou a cancela já na boca da noite, mas já na manhã seguinte nenhum outro viajante, por mais que batesse à porta ou à janela, conseguiu mais matar sua sede ou descer do animal para um descanso. Logo ao alvorecer, por motivos que até hoje ninguém sabe, a casa foi fechada de vez.
Até hoje, muitos anos depois, os sertanejos se controvertem acerca do que realmente aconteceu com a família. Uns asseveram que nunca saíram de lá; se trancaram para sempre até não restar mais ninguém. Outros afirmam que seguiram estrada adiante em busca de dias melhores, vez que a seca naquela época não mais permitia ter água na moringa para oferecer a quem por ali passasse.
A verdade é que a casa, agora quase caindo aos pedaços, continua por lá contando sua história. Ou histórias de tempos idos. E quem quiser saber de tudo pergunte ao vento. Somente ele, que tanto conversa e murmureja lá dentro, sabe de tudo.


Poeta e cronista
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Um sertanejo (Poesia)


Um sertanejo


Tenho coração sertanejo
pele de chão com raiz e flor
olhar distante e ensolarado
pés entre veredas e espinhos
paisagens de lua e de sol
fome e sede de conquistar
esperança em tudo que há
e uma certeza profunda
que serei sempre o mais feliz
entre os sofridos e renascidos
nas distâncias de meu Deus
pois grão brotado na aridez

por isso não me faça chorar
também não me fará sorrir
pois sou sertão do silêncio
e da feição de pedra bruta
onde se avista uma bela flor
sem sorrisos nem lágrimas
apenas com a face do tempo.


Rangel Alves da Costa


PALAVRAS SILENCIOSAS – 393


Rangel Alves da Costa*


“Nunca saio daqui...”.
“Nunca deixo o meu quarto...”.
“Jamais viajo...”.
“Não sei mais de estradas...”.
“Não conheço caminhos nem horizontes...”.
“Tudo o que sei...”.
“Tudo o que vejo e sinto...”.
“Somente através da janela...”.
“Da janela do meu quarto...”.
“Que está sempre aberta...”.
“Ao amanhecer ou entardecer...”.
“Ao anoitecer ou na madrugada...”.
“E o vento soprando...”.
“O vento entrando pela minha janela...”.
“Trazendo notícias e cantigas...”.
“Trazendo segredos e revelações...”.
“Daí que não tenho mundo...”.
“Mas tenho minha janela...”.
“Com retratos e fotografias...”.
“Com baús e despensas...”.
“Com cartas e bilhetes...”.
“Com temores e segredos...”.
“Com alegrias e felicidades...”.
“Através da janela vejo tudo...”.
“A lua poética e romântica...”.
“Mas também o luar entristecido...”.
“Vejo o sol resplandecente...”.
“E o mesmo sol se escondendo na nuvem...”.
“Vejo passar o passado...”.
“Enxergo toda a realidade...”.
“Avisto até o futuro...”.
“Vi o cortejo levando o alferes...”.
“Vi o escravo sendo açoitado...”.
“Vi a prostituta chorando de amor...”.
“Vi a adúltera abrindo a janela...”.
“Vi a manchete triste...”.
“Vi o cortejo fúnebre de uma solidão...”.
“Vi o doido procurando uma doida...”.
“Vi o poeta procurando uma lua...”.
“Vi um apaixonado procurando uma flor...”.
“Vi o carteiro esquecendo uma carta...”.
“Vi o bêbado e o equilibrista...”.
“Vi multidões gritando indignações...”.
“Vi a mão de esmola...”.
“Vi a fome e a sede...”.
“Vi o larápio tentando se esconder...”.
“Vi a procissão e o andor...”.
“Vi a chuva caindo...”.
“Vi o menino correndo nu pela rua...”.
“Via a menina na janela do outro lado...”.
“Vejo o noctívago andante...”.
“Vi o solitário em busca de solidão...”.
“E de vez em quanto me vejo também...”.
“E todas as vezes vou chegando apressado...”.
“Para entrar no meu quarto...”.
“E abrir a minha janela...”.
“Com olhos encharcados de lágrimas...”.


Poeta e cronista
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terça-feira, 1 de outubro de 2013

AS OPORTUNIDADES DE POÇO REDONDO


Rangel Alves da Costa*


Geralmente lembrado por causa das constantes e devastadoras estiagens que assolam seus quadrantes, e vez por outra por algum fato sensacionalista que reabre os olhos da mídia, o município de Poço Redondo agora volta a pontuar com assiduidade nos noticiários. E o motivo é mais que alvissareiro: é um dos locais que disputa a indicação para receber o polo sertanejo da Universidade Federal de Sergipe.
Localizado no centro do Alto Sertão Sergipano do São Francisco, o município é de suma importância histórica e geográfica. A história do cangaço tem em Poço Redondo um de seus cenários mais importantes. Foi nas suas terras, na Gruta do Angico nas beiradas do Velho Chico, que a 28 de julho a volante comandada por João Bezerra pôs fim à saga cangaceira, com a chacina que vitimou Lampião, Maria Bonita e mais nove cangaceiros.
É também reconhecido pelo grande número de filhos seus que enveredaram para o mundo do cangaço, com cerca de trinta rapazes e mocinhas. Possui a maior área extensão territorial de Sergipe e está situado na divisa de Alagoas e Bahia. Nas suas terras está assentado o maior número de famílias oriundas das ações do MST e da reforma agrária. É detentor de uma bacia leiteira das maiores do estado e também possuidor de dois povoados - Santa Rosa do Ermírio e Sítios Novos - que desde muito apresentam os requisitos essenciais para a emancipação.
O fato de as administrações municipais jamais considerarem sua riqueza histórica como fator de desenvolvimento, através de políticas competentes de atratividade turística, merece uma análise mais aprofundada em outra oportunidade. Contudo, antecipe-se que sua história e sua cultura são muito mais valorizadas externamente do que nos seus próprios limites, perante a população. Por isso mesmo que de vez em quando um cineasta chega por lá para resgatar acontecimentos históricos que até mesmo a maioria do povo desconhece.
Não obstante a falta de valorização interna, que sempre é justificada pela gestão municipal a partir de problemas relacionados com a pobreza, as constantes estiagens e a permanente escassez de recursos, a verdade é que a população de Poço Redondo parece ter acordado em defesa de suas potencialidades e oportunidades.
A grande perspectiva de ser escolhido como sede da UFS/Sertão trouxe ânimo diferenciado aos seus habitantes e conseguiu arregimentar o apoio da população sertaneja circunvizinha. Neste primoroso despertar talvez estejam a carência e o abandono como aspectos cruciais motivadores. Ora, cansada de tanto esperar por melhorias e oportunidades para uma vida com mais dignidade, a população passou a ver a implantação da universidade como verdadeira pedra de salvação. É agora ou nunca. Eis a verdade.
E nesta verdade também a realidade. Possuem razão aqueles que defendem a escolha de Poço Redondo como chance única para romper de vez o ciclo de miséria, de baixíssimos índices de qualidade de vida, altos índices de analfabetismo, de falta de perspectivas sociais e econômicas e abandono pelos poderes públicos, que nos seus limites se alastram secularmente.
Quer dizer, não há oportunidade governamental maior de efetivamente apoiar o desenvolvimento de Poço Redondo do que agora. Diante da escolha que deverá ser feita, se torna até lógica desenvolvimentista que a escolhida seja aquela localidade onde, a um só tempo, a implantação da universidade traga consigo o desenvolvimento e a própria administração municipal trabalhe para efetivamente mostrar que também oferece adequada estrutura.
Como já afirmei noutros escritos, apenas o fato de receber a universidade já deverá fazer com que a administração municipal chame para si a responsabilidade de mostrar que também está trabalhando para melhorar a infraestrutura municipal e a qualidade de vida da população. Ou faz isto ou o centro de ensino permanecerá rodeado por um município em total abandono, entregue à própria sorte dos tempos e regredindo cada vez mais, como vem ocorrendo nos últimos vinte anos. E certamente não é papel da universidade administrar o município para transformá-lo.
Mesmo com todos os descalabros administrativos existentes, são realmente grandes as chances de Poço Redondo ser o escolhido. Fator de suma importância são os apoios que vem recebendo nos últimos dias de autoridades de diversas vertentes. E todos naquela perspectiva da necessidade não só de dar oportunidades de desenvolvimento, mas, e principalmente, de retirar o município do estado de degradação em que se encontra.
Nasci na aridez de suas terras e sei muito bem o quanto aquele povo merece viver além da mera esperança por dias melhores. Haverá um tempo de reconhecimento, de valorização, de alcance da maioridade do progresso. Eclesiastes não mente: há um tempo para tudo. E chegou o seu tempo de conquistar, Poço Redondo!


Poeta e cronista
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Buquê de feira (Poesia)


Buquê de feira


Menina bonita
menina faceira
presente singelo
do cesto da feira
araçá docinho
flor de goiabeira
mel de araticum
lua de cumeeira
manga madura
raiz de quixabeira
pinha saborosa
folha de aroeira
sapoti de mel
flor namoradeira

tudo pra você
talvez você queira
pássaro liberto
voo de lavandeira
tudo tão sublime
minha bela rendeira
tudo com amor
fruto da palmeira
ter seu coração
cheirosa roseira.


Rangel Alves da Costa


PALAVRAS SILENCIOSAS – 392


Rangel Alves da Costa*


“Menina, menina ainda...”.
“Casinha de boneca...”.
“Boneca de pano...”.
“Brincadeira de roda...”.
“Cantiga de lua...”.
“Uma infância rodando...”.
“Uma meninice brincando...”.
“Embaixo da lua...”.
“Embaixo do sol...”.
“Tempo de viver...”.
“Tempo de brincar...”.
“Tempo melhor não há...”.
“Até que esquece a boneca...”.
“Canta outra cantiga...”.
“Já não roda na roda...”.
“Torna-se amiga do espelho...”.
“Gosta de batom e perfume...”.
“Aquela menina se faz outra menina...”.
“Tão doce e tão bela...”.
“Tão bonita e tão meiga...”.
“De vestido de renda...”.
“Flor do campo no cabelo...”.
“Parece uma princesa...”.
“E como princesa precisa de um príncipe...”.
“Quer namorar...”.
“Quer beijar...”.
“Quer conhecer os segredos do amor...”.
“E tantos sonhos...”.
“Tantas imaginações...”.
“Tantos planos...”.
“E cria retratos na mente...”.
“Um moço bonito...”.
“Um príncipe encantado...”.
“Daqueles de contos de fadas...”.
“Daqueles de carruagem...”.
“Ou de cavalo alazão...”.
“Chegando pelo ar...”.
“Surgindo de uma nuvem...”.
“E jogando beijos...”.
“Acenando feliz...”.
“Estendendo a mão...”.
“Para levá-la para o seu reino...”.
“Oh, príncipe, príncipe...”.
“Oh, príncipe, príncipe...”.
“Onde está você?”.
“Onde está sua mão?”.
“Cadê seu cavalo alazão?”.
“E se põe a janela...”.
“Dia e noite na janela...”.
“Esperando o amor...”.
“Esperando o príncipe...”.
“E logo abaixo um roseiral imenso...”.
“Sempre verdejante e molhado...”.
“Pelas lágrimas persistentes...”.
“Da moça triste...”.
“Cujo príncipe esqueceu de chegar...”.


Poeta e cronista
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