SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



domingo, 28 de outubro de 2012

ALCINO, MEU PAI: RETRATO INACABADO - I (Crônica)


Rangel Alves da Costa*


Quem vê meu pai agora, doente e entristecido por não poder mais cortar de chinelo no pé as estradas e ruas do seu sertão, de sua querida Nossa Senhora da Conceição do Poço Redondo, nem imagina o que ele já foi, o que ele já fez. E certamente ainda faria se a saúde lhe permitisse um reencontro com as forças.
Sertanejo de raiz e pedra, de feição trigueira e tez curtida de sol, da lavra de Dona Emeliana e Seu Ermerindo, meu pai, Alcino Alves Costa, se fez homem ainda rapazote, quase menino. Nascido em 1940, naqueles tempos não havia muito tempo para a criancice. Ou o trabalho na terra ou o estudo em terras distantes. Mas nem um nem outro.
Cresceu autodidata, de pouco estudo, mas dotado da peculiaridade que caracteriza alguns sertanejos: não acomodar perante os mesmos dias e as mesmas noites, buscando sempre horizontes melhores para sobreviver e sonhar. Então o rapaz se fez sonhador, mas sempre ele mesmo um príncipe de imaginário chapéu de couro, calçado em roló, vivenciando a dura realidade sertaneja, suas guerras, suas vinditas de sangue.
Daí se apaixonar logo cedo pelas histórias de beatos e curandeiros, missionários e profetas das distâncias matutas, guerrilheiros da terra do sol, cangaceiros, coiteiros, jagunços, coronéis. E como pano de fundo toda uma nefasta política de compadrio, assistencialismo e injustiças. Enxergou o Nordeste nu, sem os enfeites da cidade, sem as distorções de quem vive distante, para se debruçar sobre o grão de espinho e a rachadura ressequida da terra.
 Lançou, então, o olhar principalmente sobre o Capitão Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião. Mas por trás do maior dos cangaceiros, avistou também todo um contexto que mais tarde esmiuçaria nos seus estudos e publicações sobre o fenômeno cangaço. Se grande parte dos pesquisadores preocupava-se apenas em delimitar os lados herói e bandido do Capitão, para Alcino o consenso estava em compreender o homem perante o seu meio, e não por um feito ou outro.
Mas não se voltou apenas para as pesquisas e análises do cangaço. Sua paixão pelas raízes sertanejas, seus heróis e bandidos, suas gestas e parições, surgiu ladeada por um interesse e gosto desmedidos pela autêntica música caipira, aquela vinda da viola de pinho, das duplas caipiras, nos ritmos cheirando a terra e desventuras amorosas do homem comum. A cada melodia uma história, sinfonia de cobre envelhecido refletindo um jeito de ser tão sertão.
Então se tornou incondicionalmente apaixonado pelos cururus, guarânias, cateretês, músicas de rancharia. Mas em todos os ritmos a luz do luar sertanejo, a terra sendo semeada, a flor da raiz de um povo. Da velha radiola – que era azul por sinal, trazida do sul como presente por um primo - tantas vezes colocada no banco da pracinha da matriz em noites de lua grande, ecoavam as vozes de Tonico e Tinoco, Zico e Zeca, Belmonte e Amaraí, Cascatinha e Inhana.
Com cerca de vinte e oito anos, estando certa feita jogando bola no outro lado do riachinho, foi chamado com urgência por um emissário com ordem de seu pai, o Seu Ermerindo, para que corresse até a residência para trato de assunto urgente. Naquela boca da noite Alcino era lançado à política, escolhido por um dos grupos para ser o candidato a prefeito. Saiu vitorioso contra um ex-prefeito e daí em diante se firmou como forte liderança em toda a região sertaneja.
Sempre eleito com ampla maioria, assumiu por três vezes o destino do município de Nossa Senhora da Conceição do Poço Redondo, na região mais seca do semiárido sergipano. Era um político atípico, distante das perseguições e das intrigas maldosas, de modo a ter como auxiliar na prefeitura o candidato derrotado. Amigos, apenas de convicções partidárias diferentes, ele não relutava em convidá-los para ser secretários ou assumir cargos de grande relevo na administração municipal. Assim aconteceu com dois de seus adversários.
Político, sempre vitorioso, mas sempre mantendo a humildade e simplicidade que sempre o caracterizaram. Só vestia terno para tomar posse, depois disso a veste pomposa ficava aos cuidados da naftalina. Inimigo feroz de sapatos, gravatas, qualquer coisa que o impedisse de andar, muitas vezes, com a camisa deitada no ombro. Tinha a estranha mania de andar pelas ruas mordendo uma ponta da camisa que se estendia dobrada no corpo.
Mas amigo da havaiana sem igual. Na capital sergipana, depois de um encontro político importante, chegava estropiado pelos sapatos, sentindo o maior alívio do mundo quando calçava seu velho chinelo de dedo. Também não demorava nada na capital. Após resolver o problema seguia avexado rumo ao seu sertão.
E ao chegar, fosse ao entardecer ou noite fechada, o alívio se completava quando colocava na vitrola um disco de música sertaneja, principalmente de Tonico e Tinoco. O maior fã dessa dupla que possa existir. A melodia ecoando e ele acompanhando feito maestro matuto o “Pé de Ipê”, “Tristeza do Jeca”, “Couro de Boi”, “Saudades de Minha Terra”.
Foi prefeito por quatorze anos, em duas administrações de quatro anos e a última de seis, esta lá pelos idos dos anos 80. A essa época, ao lado da música caipira, aumentava o seu interesse pelo mundo cangaceiro, ainda refletindo tão fortemente na região. E não se deve esquecer que as terras de Poço Redondo foram importantíssimo celeiro de cangaceiros, com cerca de trinta mocinhas e rapazinhos que enveredaram pelos caminhos do sol sangrento. E não apenas isto.
Foi lá nas ribanceiras do lugar, ao lado do leito do riacho Tamanduá, na Gruta do Angico, às margens do Velho Chico, que o cangaço deu seu último canto, ou seu último suspiro. Eis que na madrugada de 28 de julho de 1938, vinda da cidade alagoana de Piranhas, a volante comandada pelo Capitão João Bezerra atravessou silenciosamente o rio para dizimar o maior dos bandos cangaceiros, ocasião em que morreram Lampião, Maria Bonita e mais nove de seus cabras.
Esta e outras histórias foram causando grande impacto em Alcino, de modo a resolver investigar com maior profundidade suas causas, motivações, percursos e, principalmente, passar a limpo muita falácia que circulava em torno do fenômeno cangaço. Tarefa difícil, mas fácil ao mesmo tempo, eis que ainda podia encontrar ex-cangaceiros, ex-volantes e ex-coiteiros, bem como fazer pesquisa de campo em locais próximos e que foram palcos de épicas batalhas cangaceiras.
Tornou-se amigo íntimo de Adília, Sila, Mané Félix e Adauto Félix, dentre outros. Além de ser principal opositor político de um famoso ex-coiteiro, e mais tarde prefeito do município, Durval Rodrigues Rosa, irmão daquele que é tido por muitos como traidor de Lampião: Pedro de Cândido. Em certa época os dois rivais políticos se uniram para vencer ameaças forasteiras e tornar prefeito um filho de Seu Durval.
Adília, mulher do cangaceiro Canário, que menina ainda foi levada pela mão amorosa para o bando de Lampião, era, a um só tempo, grande amiga e protegida de Alcino. Proteção no sentido de amparo, de ajuda para sobreviver, vez que pessoa carente demais de meios de subsistência. Ainda meninote, muitas vezes eu encontrava a ex-cangaceira em casa, numa amizade singela com minha mãe, Dona Peta.
E inocentemente brincava com ela, subia-lhe no colo e perguntava como tinha aparecido aquele buraquinho na perna. Adília apenas sorria. Somente depois fiquei sabendo da bala varando o osso, do grito de dor nas caatingas sertanejas.
Continua...
  

Poeta e cronista
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Ama-me (Poesia)



Ama-me


Não vês
meu silêncio e tristeza
angustiado em dia de luz
dê-te ao coração nobreza
afasta de mim esta cruz

ama-me...
não como uma mão
saciando o faminto de pão
mas como mulher
matando a própria sede
do tão solitário coração

ama-me...
um amor de brisa amena
o perfume da flor tão pequena
como aura da felicidade
imenso e de tanta humildade
na vida que se faz tão serena

ama-me...
com palavra de salmo e verso
com o silêncio agora imerso
com a voz meiga do olhar
dizendo o que é tanto amar
sorriso maior do universo.
  

Rangel Alves da Costa

PALAVRAS SILENCIOSAS - 57


Rangel Alves da Costa*


“Aqui o silêncio, a paz, e lá fora...”.
“Apenas a noite...”.
“Com seu açoite...”.
“E que lancinante essa dor...”.
“As dores da noite são assim, cortantes...”.
“No barraco, na marquise, no leito ao léu...”.
“Na pobreza e no desalento...”.
“Na noite acordada...”.
“As dores impedem o sono...”.
“Fecham o olho, mas ativam o pensamento e o coração...”.
“Olhos fechados e tão acordados para a realidade...”.
“Quem conseguiria dormir tranquilamente se ao redor tudo é sofrimento?”.
“Ao redor e por dentro...”.
“Doendo no âmago, gritando...”.
“E olha ao lado...”.
“O filho choroso...”.
“O filho faminto...”.
“O filho sem pão...”.
“Com a fome da noite e do dia seguinte...”.
“Acordar para um novo dia?”.
“Ou acordar para um novo sofrer?”.
“Cadê o pão do menino, o mingau do menino, qualquer comida para o pequenino?”.
“E o filho não entende tanta falta de tudo...”.
“Nem deveria. A idade exige os meios necessários à sobrevivência...”.
“O pior é que não acostuma com a fome...”.
“O adulto até suporta, mas criança não...”.
“Daí os sofrimentos...”.
“O choro do filho...”.
“A desvalia dos pais...”.
“A agonia de um...”.
“O sofrimento de outros...”.
“Fazer o que, então?”.
“Pedir ao vizinho na mesma situação?”.
“Descer o morro a mendigar?”.
“Ou desesperadamente fazer o pior...”.
“Roubar, furtar...”.
“A maioria prefere sofrer a enveredar pelos erros...”.
“Mas até quando?”.
“Eis o problema maior...”.
“Precisa alimentar os seus...”.
“E não apenas isso, pois nem só de pão vive o homem...”.
“Realmente. Assim está escrito como palavra de verdade...”.
“A vida não é só se alimentar, ainda que isso baste para a criança...”.
“Mas existe uma casa, um barraco, vidas, pessoas...”.
“E tudo e todos precisam ter a dignidade, ainda que mínima, para viver...”.
“Mas falta o gás, a feira, a roupa, o calçado...”.
“Mas chega a conta disso e daquilo...”.
“Falta a saúde e também o remédio...”.
“Falta a esperança e também a expectativa...”.
“Falta o sorriso e o prazer pela vida...”.
“Falta o acordar para a janela...”.
“Pois lhe falta a manhã...”.
“Não há manhã para quem não consegue dormir...”.
“E os olhos de ontem se voltarão para o filho adormecido...”.
“Uma criança tão linda...”.
“Tão linda e tão feia pela fome e sofrimento...”.
“Tão criança e já tão desvalida...”.
“E o que fazer quando ela acordar?”.
“Oferecer o alimento...”.
“Mas qual alimento?”.
“Do milagre...”.
“Milagre?”.
“Sim. Toda manhã uma família pobre faz milagre para alimentar seu menino”.
“E acaba conseguindo...”.
“Só Deus sabe como, mas sempre acaba conseguindo”.
“Mas um milagre sem milagre quando ele pede mais...”.
“Até que chegue mais tarde...”.
“Para o rogo aos céus!”.

  
Poeta e cronista
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sábado, 27 de outubro de 2012

O QUE SAI DA BOCA COMO PALAVRA (Crônica)


Rangel Alves da Costa*


Na Bíblia, em Mateus 15:11, está escrito: “O que contamina o homem não é o que entra na boca, mas o que sai da boca, isso é o que contamina o homem”. Por sua vez, bebendo na fonte bíblica, a música também diz que o mal é o que sai da boca do homem.
Da boca do homem sai de tudo que se imagina, do encantador ao imprestável, mas principalmente o verbo, expressado através da palavra. E que bom seria se esse poder da palavra que o homem possui servisse apenas para o diálogo útil, o relacionamento, a manifestação cordial. Mas não, pois o ser humano sempre encontra um jeito de tornar veneno aquilo que nasceu hidromel.
Palavra é carícia, é afeto, é sentimento, mas também pedra, lâmina afiada, arma mortal. Por ser assim, a força das palavras produz situações impressionantes. No dito, a sentença, o convencimento, a aceitação, a revolta, a lágrima, a resposta. Possui poder tão ilimitado que chama à guerra, sela a paz, espalha a mentira e a derrocada de qualquer pessoa. Ferida aberta pela palavra é difícil de ser curada.
Mas o que será mesmo a palavra? Para uns é um vocábulo, é um som articulado, é a unidade da língua; para outros é a voz dando significação aos seres e coisas. Mas para outros é a arma sempre engatilhada ou no repouso do pensamento maldoso para ser utilizada a qualquer momento. E a boca como canhão, a voz como bucha, a expressão como estampido!
E não somente isto, vez que o seu uso tem servido para os mais abjetos propósitos. Eis os políticos, os falsos profetas, os discursistas larápios que se espalham pela sociedade. É neste contexto que a palavra se torna objeto de ingratidão humana: o seu uso racional, porém transformada em meio de dominação espúria, de mentira, amedrontamento e submissão.
Certa feita, e disto já se conta mais de dez séculos, um velho sábio instigado por seu jovem discípulo disse que o homem não precisaria da palavra se o outro pudesse ouvi-lo não através de sua voz, mas do verbo primeiro, puro, que está na sua consciência. Concordo plenamente. Sabendo a intencionalidade da palavra do outro, então não incorreria no perigo de estar ouvindo mentira como verdade fosse.
O velho sábio tinha plena consciência que as palavras são quase nada diante do pensamento. Ora, posso dizer o que quiser simplesmente para agradar, posso buscar os versos mais doces e encantadores para impressionar, posso mentir de tal forma que o outro pensará que jamais ouviu tanta verdade. Assim, se quem ouve não procura buscar as verdades escondidas, então será fácil demais continuar manipulando como quiser.
Daí que a certeza não está nem na palavra dita – que pode ser mentirosa, como demonstrado -, nem naquilo que o ouvinte acolhe como verdade. A palavra não pode ser jogada, simplesmente arremessada ao vento. Se a palavra nasce de alguém, então primeiro se deve entender a verdade desse alguém para, e somente depois, poder confiar naquilo que expressa.
Verdade é que na boca de espertalhões a palavra se torna tão mortal que não raro o frasco se derrama na boca do seu próprio dono. Conhecendo as nuances da língua, os termos cativantes, os modos de bem falar, então se arvoram do mundo. E saem criando argumentos, costurando frases que não passam de enganações. E quando encontram um de pouca sabedoria então fazem a festa. 
Por que digo isto? Ora, explico. Ora, o que são frases senão uma junção de palavras para dar sentido a alguma coisa; o que são frases que não significados repassados através de palavras? Mas o problema é que as frases, muitas vezes, não alcançam a significação proposta pelo mensageiro ou não são ouvidas a contento pelo interlocutor. Tantas outras vezes são ditas sem cabimento algum, mas que no fundo do fundo são mecanismos ardilosos utilizados para ludibriar.
E isto ocorre por diversos motivos. Se o mensageiro possui bom repertório de palavras, conhece bem aquelas que devem ser utilizadas na frase para ser compreendido, então não haverá maiores dificuldades. Mas a maioria das pessoas possui grandes limitações no uso da língua e, por isso mesmo, possui a capacidade reduzida de decifrar o que ouve. Por consequência, apenas ouve sem noção do que realmente seja ou sendo forçado a acreditar.
Por isso mesmo dizem que a palavra simplesmente aceita, sem jamais ser depurada ou conhecida nas suas entranhas, pode provocar danos irreversíveis, irreparáveis. E aquela que não é contraditada, rebatida, afeta ainda mais. E tudo porque a mente não soube enviar à boca a resposta exemplar diante de qualquer ofensa: “A sua razão é apenas sua, pois a mim compete saber a verdade, e não sei se está pronto a ouvi-la!”.
  

Poeta e cronista
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Amoras, amores... (Poesia)



Amoras, amores...


Pomar que cheira
fruto da amoreira
a moça faceira
fruta namoradeira

beijo agridoce
negrume no olhar
vermelho na boca
um doce saborear
quero teu jardim
quero teu pomar
coração quer amoras
e se acaso namoras
quero namorar
quero pele e fruta
morder e cheirar
então dê-me amores
preciso de amoras
quero em ti amorar
muito amor namorar.
  

Rangel Alves da Costa

PALAVRAS SILENCIOSAS - 56


Rangel Alves da Costa*


“Janela aberta, vento soprando...”.
“Saudade?”.
“Não há como não viajar em momentos assim...”.
“Parece que o momento abre gavetas, estantes, baús...”.
“E surgem as cartas, as fotografias...”.
“As lembranças antigas, as joias de outro tempo...”.
“Os relicários, os segredos...”.
“As faces e as feições em pequenos escritos, em pedaços de papel...”
“Tudo tão presente um dia...”.
“Agora tudo amarelado, turvo, opaco, apagando...”.
“Talvez como a testar nossa memória, o nosso compromisso com o passado...”.
“Simplesmente esquecer tudo, num deixe pra lá...”.
“Mas impossível acontecer assim...”.
“Não possuímos apenas nome e sobrenome, mas nomes e sobrenomes...”.
“Isso mesmo, e tudo numa linhagem distante...”.
“Numa herança familiar que não se pode negar...”.
“Ora, somos o agora por causa do ontem...”.
“E no ontem a geração que foi semeando...”.
“E brotando, criando raízes, espalhando a semente...”.
“Grão a grão desde muito distante...”.
“E que colheita difícil, numa luta de toda a vida...”.
“E tudo para que existíssemos...”.
“Por isso não devemos relegar essa história...”.
“A nossa história e a história familiar...”.
“Tudo como um livro...”.
“Livro e álbum...”.
“Vidas e feições...”.
“E somos páginas desse livro...”.
“Apenas uma para cada um...”.
“Mas que escrevemos no nosso verso aquilo que desejamos na página seguinte...”.
“Sim. Na página que nos cabe passamos a escrever nossa história...”.
“Uma história a partir do já existente e do que desejamos dali em diante...”.
“Uma história que diz sobre nossa luta pela sobrevivência...”.
“Nossos amores e desamores...”.
“Conquistas e temores...”.
“Do encontro perfeito...”.
“Do primeiro olhar...”.
“Do primeiro beijo...”.
“Do primeiro abraço...”.
“E das mãos que se deram para seguir pela estrada...”.
“E a estrada com outros caminhantes...”.
“Já presentes nas outras páginas do livro...”.
“Nossos filhos...”.
“E mais tarde nossos netos...”.
“E o livro familiar se avolumando...”.
“Que bom que tal livro jamais fosse esquecido...”.
“Abandonado, renegado, e até rasgado...”.
“Ao abri-lo, lá pelas primeiras páginas, tudo tão diferente...”.
“A vida noutros tempos...”.
“Nossos antepassados com suas mentalidades...”.
“E folheando as páginas seguintes vão surgindo as mudanças...”.
“Tal qual mudam as gerações, os pensamentos, as ideias...”.
“Mas tudo numa narrativa que se entrelaça...”.
“Porque o livro somente será compreendido a partir do início...”.
“De onde tudo nasceu...”.
“E somente assim ser possível compreender o presente...”.
“Que tipo de literatura seria esse livro familiar?”.
“Biografia, talvez...”.
“Memorialismo...”.
“Romance épico...”.
“Uma grande fábula da existência...”.
“Não, haveremos de encontrar estilo mais adequado...”.
“Sim...”.
“Uma sagrada escritura...”.
“Sim, o Gênesis...”.
“A nossa Criação...”.

  
Poeta e cronista
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sexta-feira, 26 de outubro de 2012

ANJO AVESSO (Crônica)


Rangel Alves da Costa*


Não que fosse anjo mau, anjo rebelde ou insubordinado. Também não era anjo caído, passado para o lado do mal. Era apenas um anjo, mas anjo avesso, e tudo o mais que isso possa significar.
Na verdade, o ente espiritual poderia ser melhor caracterizado como anjo guardião, mas que, por gostar de tomar decisões próprias, retransmitir as mensagens que bem entendesse, e agir segundo a sua própria consciência angelical, havia se tornado avesso.
Anjo avesso, contudo, não significa querubim que abdica de sua função e passa para o outro lado; não quer dizer serafim que de repente passa a se contrapor aos seus superiores no coro; não quer exprimir a ideia de que um trono oculta por debaixo de suas asas um caráter nada angelical.
Nada disso. Não há uma face maléfica que de repente transforma o anjo num ser da escuridão. Anjo avesso apenas porque num momento ou outro se esquece, ou finge esquecer, de sua condição de entidade espiritual, de criatura celestial enviada a terra como mensageiro e zeloso protetor – deslembrando até que possui asas e pode voar -, para testar e usufruir dos sentimentos humanos.
Então eis o maior perigo. Um ente que desce cheio de compromissos, recomendações, afazeres e tudo o mais que for necessário para bem guardar o seu protegido, em momento algum pode fraquejar e querer imitar ou sentir as agruras e as fragilidades humanas. Um anjo que ao invés de guardião se torna num cúmplice não serve a que veio. Não passará de anjo avesso.
Mas um dia aconteceu o inesperado. E creio que acontece muito mais do que imagina nossa vã e frágil filosofia celestial. Mas seja como for, verdade é que um anjo de primeira viagem, talvez ainda em estágio probatório, foi enviado a terra para cumprir a espinhosa missão de guardar um coração apaixonado, vez que o temor maior lá em cima era que de repente a pessoa perdesse totalmente o controle e fizesse uma besteira. E ainda não havia chegada a sua hora.
O anjo jurou obediência, afiançou ainda não desrespeitar sob hipótese alguma as ordens e as prescrições recebidas. Então desceu todo feliz e sorridente, planando bem acima para depois descer e ficar ao lado do seu guardiado. Mas não era homem, e sim uma bela jovem que logo jurou ter igual beleza aos pares femininos lá em cima.
E a beleza causou um impacto tão grande no anjo estreante, que num breve instante já estava esquecendo as ordens recebidas. E começou a agir perigosamente. E não somente isso, pois de vez em quando esquecia que estava ao lado da guardiada para servir-lhe de guia e proteção, que estava ali com a incumbência de transmitir e enviar mensagens, que precisava agir de forma diferenciada perante a pessoa sob seu manto.
E então tudo desandava, e quem soubesse das estripulias praticadas nem imaginaria ser arte ou da parte de anjo. Eis que certa feita deixou vagando sozinha e à beira de precipício aquela mulher completamente tresloucada de paixão. Depois justificou o negligenciamento dizendo ser bem feito alçar doloroso voo aquela que tencione trocar a vida por um amor não correspondido. Melhor seria se amasse um anjo. E foi a gota d’água.
Sentindo-se repentinamente puxado para o alto, subindo sem querer, ao pousar no palácio dos anjos já estava com o pensamento cheio de mentiras para contar. Sabia por que havia sido chamado daquele jeito, tão bruscamente, mas não confessaria de jeito nenhum que estava apaixonado e exatamente por aquela que deveria proteger dos perigos do amor e da paixão. Então começou dizendo que não gostava de estar ao seu lado porque era muito feia.
Sentindo ele mesmo a fragilidade de tal afirmação, teve de se esforçar diante do anjo superior para não ser penalizado e jogado ao meio dos anjos caídos. Então pediu mil perdões e ajoelhado com as asas recolhidas disse que talvez não suportasse ouvir o clamor de um coração apaixonado, pois toda vez que escutava falar em amor tinha vontade de transgredir sua função angelical e amar como pessoa qualquer.
E disse, enfim: Manda-me de volta a terra como homem e por enquanto não precisarás mais de anjo para protegê-la. O amor que tenho e pretendo oferecê-la, juro em Deus, é mais forte e muito mais poderoso do que todos os coros, legiões e falanges de anjos.
  

Poeta e cronista
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