SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



sexta-feira, 20 de outubro de 2017

A CANÇÃO DE UM POVO


*Rangel Alves da Costa


Muita gente não consegue disfarçar a dor e o sofrimento. Entrega-se ao padecimento quando está triste, chora rios e mares quando vem a aflição. Contudo, pessoas existem que não deixam transparecer a agonia de jeito nenhum. Mesmo que sofram por dentro, externamente se mostram encorajadas e até festivas. Assim acontece com o povo africano, cujo sofrimento não consegue inibir seu canto e sua dança. E assim também no sertão, só que o canto sertanejo é de feição tristonha e coração apertado.
O sertão é verdadeiramente terra de contrastes, de contradições. E inexplicável, por vezes. Porém tudo compreensível para que assim aconteça. Diante das condições próprias do lugar, num misto de desolação e esperança, de secura e florada brotando nas cactáceas, também o sertanejo se ajusta ao instante, ainda que seja difícil entender porque o canto na boca quanto o olhar avista ao redor e só encontra tristeza.
Tantas vezes, com a panela vazia, com o pote já chegando ao barro do fundo, mesmo assim a guerreira sertaneja, de pano amarrado na cabeça e olhar tristonho, olha para o varal sem roupa e se põe a cantar:
“Quero uma ciranda sertaneja, quero cirandar no meu lugar. Já cirandei menina, já rodei debaixo do luar, e não é porque envelheci que vou deixar de cirandar. Traga uma lua pra mim, traga uma ciranda pra mim, hoje eu quero cirandar até o dia raiar...”.
Noutras vezes, talvez relembrando as histórias cangaceiras tão costumeiras por ali, fazendo moradia no sertão como o calango reinando por cima da terra quente, a velha senhora vai varrendo o chão de barro da casa de taipa e cantarolando:
“Acorda Maria Bonita, levanta vai fazer o café, que o dia já vem raiando e a polícia já está de pé. Se eu soubesse que chorando empato a sua viagem, meus olhos eram dois rios que não lhe davam passagem. Cabelos pretos anelados, olhos castanhos delicados, quem não ama a cor morena morre cego e não vê nada. Acorda Maria Bonita...”.
Descalça, caçando araçá amarelinho pelos arredores, de modo a se dar o prazer de saborear uma doçura naquela vastidão tão hostil, a menina sertaneja, de vestido de chita e fita no cabelo, se imagina numa roda de brincadeira entre amigas e cantando:
“Atirei o pau no preá, mas o preá não morreu. Todo mundo se admirou do buraco que o preá se meteu... Se essa nuvem se essa nuvem fosse minha, eu mandava, eu mandava ela chover, uma chuva, uma chuva forte assim, pra salvar o sertão e também a mim... Sou sertanejinha, sou sim meu bem, sou de palha de milho, sou sim meu bem, tenho cabelo de trança, tenho sim meu bem, e não sou e não sou mais criança...”.
Mesmo com seca de mais de ano, com tudo acinzentado, devastado, com mandacarus e xiquexiques encurvados e entristecidos, gado caindo de fome e tanque sem uma gota d’água, ainda assim os sertanejos se encontram para aboiar suas desventuras ao pé do balcão. E ecoam um aboio dolente:
“Ê, ê, ê, gado ô, eiá...Vaqueiro que fui pelo mundo atrás da bicharada perdida, galopei a vida num segundo sem pensar em despedida, mas hoje já velho e cansado, sem quem me ouça aboiar, sou cavalo atrofiado sem poder mais galopar. É com o coração despedaçado que me despeço do cantar, só pedindo ao meu Senhor para o sertão nunca calar o verso matuto aboiador. Ê, ê, ê, gado ô, eiá...”.
E pelas estradas espinhentas, sob o sopro calorento das tardes, as velhas beatas seguem em procissão pedindo a intercessão divina diante de tanto padecimento. Carregando a imagem de São José, o protetor dos sertanejos, levantam as vozes melodiosas numa reza esperançosa:
“São José do sertanejo, São José de todo o sertão, olho pra cima e não vejo sinal de chuva e trovão. Salvai esse povo sofrido, fazei chover nesse chão, alegria do povo oprimido e fazendo crescer plantação. São José irmão do nordestino, tão bom pai do meu Senhor, dai graças ao nosso destino, livrai-nos da desgraça e da dor”.
E assim vão levando a vida, passando os dias, entre cantos e lamentos, sempre com os olhos voltados para o horizonte. Mas quando chove, quando a esperança vem dos céus com a molhação, o que se ouve então é uma orquestra subindo da terra, despontando dos escondidos, ganhando voz na mataria, no bicho ainda restante, no barro que se desfaz. Todo o sertão, numa só cantoria de todas as bocas, visíveis e invisíveis, sente tomado pela mais bela canção:
“Quanta beleza vem do céu, se vai nossa vida ao léu. É a nuvem carregada, molhando telhado e estrada, encharcando a terra seca, vida nova de invernada. Chuva que vem de Deus, para os seus e para os meus, para encher panela e pote, de tudo a melhor sorte. Então deixa chover, chuvarar, chuvarecer, então deixa pingar pro sertão todo molhar. Se ontem comi da pedra, amanhã do que plantar...”.
E assim até que o maestro sol novamente levante sua batuta e faça calar tão singela cantiga. E depois somente a cantoria da vida, o canto do dia a dia, diante dos mesmos temores pela seca que logo virá. Mas é preciso cantar, é preciso rezar, pois alguém poderá ouvir essa voz.


Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com

Nenhum comentário: