SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



segunda-feira, 31 de agosto de 2020

TIBERIANO AROEIRA, O CORONEL



*Rangel Alves da Costa


Coronel Tiberiano Aroeira, também conhecido como Senhor do Vai-e-Vem, pois dono de tudo que ia e voltava, era homem de muitas e estranhas manias. Padre Licurguino morreu com hóstia envenenada exatamente porque caiu na besteira de dizer isso num sermão. Cavou a sepultura ao dizer que o velho coronel era também o senhor das manias maníacas.
Não precisava nem o coitado do vigário entrar nesta seara, pois todo mundo sabia disso. E sabia principalmente que a principal e mais odienta mania da velha cascavel era mandar matar, e qualquer um, fosse um inimigo do mesmo cabedal ou um desvalido de casinha de choupana de beira de estrada.
Realmente, o homem parecia não ter outra coisa a fazer que não viver maquinando esquisitices, maldades, coisas de arrepiar. Mas também presepadas de gente doida, maluquices desmedidas, excentricidades de toda sorte. Diziam que era também um mentiroso de marca maior. Mas quem era maluco passar isso na cara da serpente cheia de linho branco por cima?
Corria à boca miúda que havia mandado cavar um buraco nos escondidos do seu casarão. Buraco grande, até confortável para quem quisesse ali se esconder. E diziam que o poderoso não podia nem ouvir falar no nome de Lampião que corria para o dito buraco. E ali ficava rezando para que o grande justiceiro das caatingas não lhe aparecesse para fazer perguntas sobre uns certos desmandos.
Homem rico demais, coronel de patente política, senhor do voto de cabresto e da vida de todo mundo que tivesse a desdita de ter nascido na sua região, do seu casarão latifundiarista selava a sorte de tudo. E de todos. Jagunço pra mais de vinte, armas num arsenal, cabeças de inimigos guardadas em formol. De vez em quanto ia até a despensa macabra pra conversar com suas vítimas, principalmente dizer que estava pensando em mandar cortar sua língua, vez que falava e não ouvia resposta.
Confessou a um amigo político, gente de mando em todo o estado, que estava com vontade de relatar suas memórias para alguém que fosse mestre em escrever biografia de gente importante. Até já tinha o título da biografia: “Coronel Tiberiano: um anjo com asas e tudo”. O amigo pigarreou desconfiado, meio sem jeito, mas disse que no mais tardar cinco dias riscaria ali um memorialista de renome para transformar em livro uma vida de tantas glórias.
Três dias depois se apresentou ao coronel o esperado memorialista, biógrafo reconhecido pela veracidade nos fatos relatados. Era tido por todos como aquele que não admitia acrescentar nada além da mais pura verdade da vida do biografado. Mas se realmente fosse assim, eis que tinha um grande problema para resolver nos relatos da vida do poderoso.
O homem das letras marcou para começar a ouvi-lo logo na manhã do dia seguinte. Assim que sentou diante do enviado, o anfitrião foi logo dizendo que não se esquecesse de colocar no relato nada do que dissesse dali em diante. Afinal de contas o livro ia sair como sendo ele o próprio escritor. O letrado então logo começou a desconfiar que aquilo não ia dar certo. Mas o medo não lhe permitia discordar de nada.
Assim, com três dias de relatos o velho gravador já havia utilizado mais de dez fitas cassetes. E em todas a mais pura verdade, no dizer do biografado. Assim constava sobre o menino pobre, de família religiosa, que havia sido coroinha, e que até os vinte anos não tinha nem o que comer nem o que vestir. Num sonho, recebeu um aviso onde estava uma botija e sua vida se transformou totalmente daí em diante.
Repartiu com os pobres a maior parte da herança e com a sua parte comprou umas terrinhas, mas pensando em fazer uma propriedade comunitária. Toda riqueza conseguida daí em diante foi para fazer caridade, para auxiliar os necessitados, para dar casa e comida a quem não tinha. Mandou construir e reformar igrejas, erguer casas de saúde e, se continuava sendo um homem rico, talvez fosse pelo reconhecimento divino do seu bondoso coração.
O biógrafo estava em tempo de explodir, não suportando mais ouvir tantas mentiras e descaramentos. Até que arranjou coragem e perguntou se era verdade o que comentavam, com notícias dando conta de que ele era um covarde mandante de assassinatos, impiedoso com inimigos, a pessoa mais violenta e desumana que podia existir. E que se mijava todinho só de ouvir que o Capitão Lampião estava na região.
O coronel deu uma gargalhada de espantar bezerro, e disse em seguida, com olhos brilhando, que não havia no mundo alguém mais bondoso que ele, um verdadeiro anjo de pessoa, alguém que no seu coração cristão não admitia nem que matassem uma mosca. E acrescentou que jamais teve do que temer no maior dos cangaceiros, de quem, aliás, era compadre.
Como havia sido contratado para escrever sobre o que ouvia, e também pelo fato de que a precaução é amiga de muita coisa, três meses depois o memorialista voltou com um calhamaço de palavras bem trabalhadas. Colocou em frente ao coronel e disse que toda a verdade sobre a sua vida estava ali. Então o homem chamou dois jagunços e mandou que ficassem por trás do escritor enquanto este estivesse lendo o livro sobre sua vida.
A cada página o coronel se enchia de sorrisos, de encantamentos, ficava feliz. Assim mesmo havia relatado, dizia ele. Mas já depois de umas trinta páginas os jagunços começaram a se comportar de um jeito diferente. Um olhava pro outro desconfiado, vermelho, querendo desmentir tudo aquilo. De tanto esforço ouvindo tantos embustes, lá pelas tantas um deles, depois de arroxear, não suportou e caiu mortinho da silva.
O outro quis acudir o companheiro, porém o coronel exigiu que esquecesse e prestasse atenção na sua bonita e bondosa história. Mas quando o biógrafo leu que “Desde então, o Coronel Tiberiano Aroeira vive iluminado pelas graças divinas, cercado por anjos, um verdadeiro querubim espalhando a graça e a bondade entre os seus”, o outro jagunço não suportou mais e disse raivoso:
“Vai mentir assim na casa da peste. Esse homem num vale nada, nunca fez bem a ninguém. Bote aí que ele mandou matar mais de cem, que só vive pra fazer o mal. E bote aí também que ele disse que não é pra deixar vosmicê sair vivo daqui de jeito ninhum! Bota aí, bote!”.
Ao ouvir isso o coronel corou, desbotou, azedou, rosnou, mumunhou, revirou os olhos, tentou puxar a arma pra atirar no jagunço, mas teve de parar ao ouvir do seu próprio pistoleiro: “E bote aí tomem que ele morreu de morte matada, e por um cabra que num suporta mais viver de tanta mentira. Tome fi do cabrunco! Bote aí, bote. Tome fi da peste!”.
E disparou bem na testa do patrão. E as últimas palavras do coronel, do Senhor do Vai-e-Vem, foram exatamente essas: “Bote isso não...”. E descoronelou de vez.


Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com

Lá no meu sertão...


Poço Redondo, a arte de um povo...





As velhas flores (Poesia)



As velhas flores


As velhas flores
foram trocadas
por flores novas

mas ao invés da alegria
o velho jarro
quedou-se em melancolia

tomado de novas flores
o velho jarro
entristecia em suas dores

o pó dos anos trazia acalanto
e o amor que sentia
não merecia ser pranto

quebrou-se ao anoitecer
e junto às flores velhas
debruçou-se até morrer.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta - os anos passam...



*Rangel Alves da Costa


Os anos passam. Tão rapidamente os anos passam. Minha idade corre, avança, com infatigável desejo de chegar a qualquer lugar. Nem quero saber onde seja este lugar. Dói-me saber que os anos passam para apressar um fim. Ontem eu era criança. Na verdade, ainda sou criança. Mas criança na memória, na nostalgia e na relembrança. Uma felicidade alcançada pelo passado. A bola de gude, o cavalo de pau, a nudez do menino pelas ruas encharcadas de chuva. E querendo crescer logo, crescer mais, ser logo adulto. E sem saber que quando a idade começa a correr, quando os anos tomam fôlego de pressa, nada mais poder conter seu ímpeto de chegada. Inevitável que fosse de outro modo, pois tudo em pressa de ventania. Agora, tentando conter a pressa dos anos, chamo novamente o menino para novamente brincar, para ser feliz e de novo sonhar. Olho para trás e me vejo correndo descalço pelos descampados da vida. Olho para frente e o meu espelho amarelado já não diz o que sou. Mas adiante há uma porta. E após ela uma estrada. Um caminho que forçadamente me faz caminhar. E algum dia chegar aonde não quero chegar.


Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com

quinta-feira, 27 de agosto de 2020

ENLAÇADOS LAÇOS



*Rangel Alves da Costa


O tempo passa, a gente vai envelhecendo, de repente já estaremos distanciados demais de nossos antepassados, nossas raízes familiares e de todo o convívio que nos permitiu chegar até onde estamos agora. Mas jamais esquecer.
Ora, não se pode esquecer as lições de um livro bom que sempre pede para ser relido em nossa memória. Página a página, vidas e suas sagas.
Mesmo que às vezes doa, que aflija por dentro pelas recordações, lembranças e nostalgias, ainda assim temos que olhar pra trás e avistar o que há de nós e o que há dos nossos que ainda podem ser avistados. Não nasci agora, não vim ao mundo sozinho.
Sou filho de pessoas que foram gestadas por outras pessoas, e daí um vínculo consanguíneo e familiar que jamais poderá ser negado em nome do esquecimento, da ingratidão ou do tanto faz.
Meu pai Alcino era filho de Dona Emeliana e Seu Ermerindo. Minha mãe Maria do Perpétuo, Dona Peta, era filha de Teotônio Alves China (o China do Poço) e Dona Marieta (Mãeta).
Sou neto deles, sou neto de Seu Ermerindo e Dona Emeliana Marques, e de China do Poço e de Mãeta. E estes também tinham suas raízes, seus berços familiares.
Com isto quero afirmar que minha presença de agora é um reflexo do ontem, do passado distante, do que foi brotado pelos meus até que em mim florescesse a vida.
Por isso não posso enxergar o espelho do presente sem avistar as velhas fotografias molduradas na parede do tempo e do coração. E quanta saudade dá!
Lembro-me, dentre tantas lembranças e nostalgias, dos santos no céu amadeirado do oratório de minha avó Emeliana, de seu gosto pelo Juazeiro do Padim Ciço e de sua voz firme dizendo assim e assim. Romeira, devota, uma sertaneja de rosário de contas e de promessas.
Lembro-me do coração perfumado de meu avô Ermerindo e do seu jeito firme, como a não querer revelar seu sentimentalismo e sua bondade.
Relembro seu armazém, sua mercearia, seus couros, seus fardos de algodão, seu balcão imenso e sua geladeira a gás nos fundos da venda. Lembro sua predileção pelos repentistas nordestinos e o monte de discos que ele trazia a cada romaria.
Meu avô China era um abridor de portas para os muitos amigos que possuía. Não recebeu apenas Lampião e o Padre Artur Passos em sua moradia, mas também comboeiros, andantes, mascates, pessoas que cortavam os sertões poço-redondenses.
Sua vendinha ao lado da casa era mais para prosear com os amigos do que mesmo como meio de sobrevivência, vez que possuindo algumas fazendas e sendo reconhecido como um de posses da pequena povoação.
Minha avó Marieta, Mãeta, vivia para os santos, para as rezas, para as igrejas, para abençoar quem passasse pela sua porta e para avistar o mundo, ali sentadinha ao entardecer em sua calçada.
Em dias de missa, e lá ia ela, toda miudinha, levando livros de rezas e crucifixos, levando sua cadeira de oração e seu xale de renda escura sobre a cabeça.
Meu pai Alcino sempre foi dividido em muitos, o Alcino político, o Alcino amante de seu sertão e o Alcino familiar.
Mas eu gostava mesmo era do Alcino sertanejo, aquele apaixonado pela terra, pelo seu povo, adorador de Tonico e Tinoco, catador de causos e histórias da saga sertaneja, aprendiz de escritor dedilhando em antiga máquina de escrever.
Inesquecível aquele Alcino saindo com sua pequena radiola e discos e indo até o cruzeiro da Praça da Matriz, e aí fazer ecoar pelas noites sertanejas o cancioneiro apaixonado de seu sertão.
Minha mãe Dona Peta, a fina flor do meu coração. Sem outras palavras para descrevê-la, senão aquelas que dizem sobre sua beleza, sua doçura humana, seu indistinto amor.
Costurava, bordava, pintava tecidos, gostava de fazer doces e comidas, possuía uma voz tão bela que os anjos se encantavam quando chegava à igreja.
E eu, eu sou uma parte de tudo isso, uma prenda viva de laços familiares, ou aquele que tudo faz para jamais se afastar daquele jardim de onde floresci.
Por isso que olho no espelho e me avisto em muitos. Não sou apenas Rangel. Sou Rangel de Alcino e de Dona Peta, mas também Rangel de Seu Ermerindo e de Seu China, de Dona Emeliana e Dona Marieta.
Tenho um nome, mas sou aquele que vem do sobrenome.


Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com

Lá no meu sertão...


Em Curralinho, às margens do Velho Chico, recordações ribeirinhas...



Lobo na solidão (Poesia)



Lobo na solidão


Na noite escura
no alto do monte
uivos em profusão
uma dor angustiante
do lobo na solidão

o dia amanhece
o silêncio no monte
nada lembra a noite
e seu uivo de dor
da solidão em açoite

o dia anoitece
e o lobo caminha
tristeza em seu coração
vai ecoar no monte
seu uivo de solidão.

Rangel Alves da Costa