SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



terça-feira, 24 de outubro de 2017

VIDAS SÃO VARAIS AO VENTO


*Rangel Alves da Costa


Para muitos, os varais são apenas arames, cordames, nylons ou fios estendidos nos quintais ou muros, onde são colocadas e estendidas as roupas e outras peças de pano para secar ao sopro do vento.
Para muitos, os varais são apenas fios alongados entre vigas, árvores ou varas, adormecidos dia e noite à espera que cheguem com roupas molhadas ou encharcadas. Ali estendidas, firmes em pegadores, as roupas e os panos vão perdendo suas umidades até novamente estarem prontas ao uso.
Para muitos, os varais são apenas isso. Nada mais que isso. Um objeto qualquer que serve para secagem de tecidos. Apenas fios estendidos entre vigas. Ou apenas qualquer coisa cuja utilidade é tão despercebida quanto os demais objetos que guarnecem os muros, os quintais, os lados residenciais.
Para outros, contudo, os varais são como poesias escritas no olhar. Aqueles panos estendidos, aquelas roupas molhadas e lentamente secando, aqueles tecidos encharcados que vão ficando leves, aquelas camisas e calças, vestidos e saias, que de repente começam a querer esvoaçar, são como processos de aprisionamento e liberdade.
Para estes, aqueles que avistam muito além dos panos estendidos, os varais sintetizam a própria existência. Quando os ventos sopram e os gotejamentos molhados começam a cessar, quando e rigidez ganha contornos de brandura, quando as roupas já não estão apenas estendidas e se mostram como soltas, então a reflexão acerca daquele instante em que o ser humano sai de seu encharcamento interior e se impulsiona de asas abertas.
Nas vigas e paus que sustentam os varais, ou mesmo nos fios estendidos, geralmente pousam e repousam os passarinhos. Quando não estão tomados de roupas e em instantes em que os quintais e os muros estão silenciosos e calmos, são os pássaros que ali chegam para a mesma idealização dos varais como instrumentos de fuga e de liberdade. Depois do voo, ali repousam por instantes, refletem sobre os passos seguintes, e depois levantam voo pelos horizontes.
Há quem aviste os varais como algo com vida própria. E não será errôneo pensar assim. Ao longe, avistando as roupas estendidas, de repente o olhar se espanta pelos braços abertos, pelas calças querendo andar, pelos vestidos e saias querendo pular, pelas sensações de que ali existem pessoas e que desejam o seu mundo. E quando a ventania chega mais forte e uma camisa se desprende dos pegadores, no alto, em pleno voo, é como se as mãos dessem adeus.
Essa humanização do varal sempre provoca lágrimas, tristezas e sofrimentos. Essa sensação de que no varal estão estendidas vidas, sempre provoca saudades, angústias, desolações. Ora, qual a sensação de uma pessoa que após lavar e estender a roupa de um ente querido já partido para o além, de repente passa a sentir que a roupa se move e que os braços se abrem avidamente, que deseja ser tocada, abraçada, sentida, reencontrada?
Mas, acima de tudo, vidas, as nossas vidas, são como varais ao vento. Vez por outra sentimos que precisamos nos lavar e nos esfregar com água e sabão, por dentro, no âmago, para afastar aflições que persistem acontecer, e depois nos estender em varais para o necessário renascimento. Outras vezes, ante as lágrimas que insistem em cair, perante os prantos que persistem em brotar, diante dos rios e mares que surgem na face, sentimos que precisamos nos refazer, enxugando as dores e os sofrimentos em varais.
Há, ali no quintal, um solitário varal. Abro a porta da cozinha e sigo em direção ao cercado. Como não posso me erguer e ali me estender com roupa e tudo, simplesmente tiro de mim todos os panos e no varal os estendo. Mas para que faço isso? Meus olhos me avistam leve, solto, querendo esvoaçar. Talvez ali a minha liberdade maior ainda não conseguida e o imenso desejo de querer voar. Voar. Voar!


Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com

Um comentário:

Ana Bailune disse...

Quando cheguei m casa após o enterro do meu pai, lá estava pendurada no varal da área de serviço a sua camisa usada. Ele costumava chegar em casa, tirar a camisa e pendurá-la lá - na verdade, ele a jogava no varal - para secar o suor. estavam lá a camisa, o cheiro dele. mas ele nunca mais estaria.