SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



sábado, 3 de setembro de 2011

NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 19 (Conto)

NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 19

                                         Rangel Alves da Costa*


Já que estava liberada do trabalho e ao mesmo tempo estágio no escritório, podendo se considerar de férias forçadas, naquela manhã Carmen Lúcia resolveu que iria mesmo visitar as mães de Jozué e Paulo. Primeiro passaria na casa de Dona Leontina, por ser mais distante e num local que, a bem da verdade, não sabia nem onde ficava. Depois, se desse tempo ainda durante a manhã, iria até a casa de Dona Glorita. O problema maior é que moravam em locais muito distantes um do outro, em opostos que se pareciam apenas na pobreza.
Antes de sair verificou se levava os endereços na bolsa e até imprimiu um mapa contendo aquelas localidades, logicamente com medo de se perder em locais que não conhecia e poderiam ser perigosos. Assim, subiu no seu carro e rumou em direção ao Cafundó do Judas. Era esse mesmo o nome indicado por Dona Leontina quando lhe repassou onde morava.
E disse ainda que entrasse ali, depois ali e em seguida suba não sei aonde e desça por ali e depois vire a esquerda. E quando chegar em tal local pode perguntar onde fica o Cafundó do Judas que todo mundo sabe dizer. Para chegar até a rua não era difícil não, era só virar a esquerda, pegar a direita, e mais adiante... A mesma coisa com relação ao endereço de Dona Glorita, só que esta morava num local de nome mais pomposo: Quase Paraíso. E faltava o que para ser Paraíso? Carmen se perguntou, tentando se alegrar um pouquinho. Somente depois é que saberia o que faltava.
Levou mais de uma hora até encontrar o Cafundó. E ficou imaginando quanto sacrifício fazia aquela mulher para se dirigir até o centro da cidade e chegar logo cedo ao escritório para depois ser covardemente tão enganada. Quando o seu carro entrou na rua indicada, surgiu meio mundo de olhares nas janelas e nas portas entreabertas para avistar quem estava chegando naquele carro bonito. Ademais, tanto o carro como a motorista eram completamente estranhos por ali.
Não encontrou o número indicado, mas quando perguntou onde poderia encontrar Dona Leontina logo indicaram uma casinha acanhada, bastante deteriorada pelo tempo, sem uma cor na parede que dissesse que não era marrom lamaçanto. Pelo barulho que fizeram lá fora, antes mesmo que fosse até lá chamar a mulher botou a cabeça numa janela. O maior espanto do mundo pela inesperada visita e depois um sorriso arranjado de satisfação.
Como já era de se esperar, assim que a porta foi aberta ouviu que desculpasse por receber uma moça tão importante, futura doutora, numa casinha tão humilde daquela e que mal tinha uma cadeira decente pra ela sentar. E também como era de se esperar, Carmen tratou logo de afastar tais preocupações e procurou deixar a dona da casa o mais despreocupadamente possível.
Olhou nas paredes e avistou retratos de santos, fitinhas também com nome de santos, uma velha fotografia já amarelada e, num local mais visível, ali mesmo na sala da frente, uma fotografia mais recente, mais conservada, encimada por um plástico. Logo imaginou quem seria e perguntou se aquele retratado ali era o seu filho Jozué. E a pobre mãe, tornando os olhos marejados assim que se virou para o retrato, disse entristecida:
“Esse é Jozué, dona menina, esse é o meu Jozué. Como não tará o bichinho a essa hora, lá preso junto com bandido, gente errada de verdade, e ele seno inocente? A senhora acha que quano sair essa tal de sentença ele vai sair daquele lugar dos infernos?”. E Carmen se aproximou, colocou a mão no seu ombro e disse que era sobre esse assunto mesmo que estava ali para conversar, além de outras coisas certamente.
Mas antes que começasse a falar, Dona Leontina a convidou para conhecer os outros quatro aposentos da sala, consistindo estes em dois quartos que mal dava uma cama em cada um, uma salinha com uma velha mesa de duas cadeiras mais velhas ainda e a cozinha com seus apetrechos e quinquilharias. Pelos cantos, panelas antigas e amassadas, um pote de barro, uma geladeira sustentada por pedras embaixo e cordas por cima e um mundo inteiro de só isso mesmo, pois o fogão de lenha ficava na parte dos fundos, sob uma pequena cobertura. Ali no quintal uma pequena horta medicinal, um chiqueiro de porcos vazio, uma porção disso e daquilo e dois pés de árvores frutíferas, porém desfolhadas. E num canto do cercado duas galinhas e um galo já sem idade amarrados.
“Mas por que estas galinhas e este galo estão amarrados ali no canto, Dona Leontina?”, indagou Carmen estranhando aquela situação. Contudo, antes de responder a boa mulher arrastou-a pelo braço até o seu quarto de dormir e no local estendeu a mão mostrando uns objetos espalhados por cima da cama e num dos cantos.
Quando acendeu a luz Carmen pôde enxergar uma panela de pressão, uma bandeja de inox já bastante desgastada, uma pequena pilha de pratos antigos e com belos desenhos por cima, dois jarros com flores de plástico dentro, parecendo terem sido lavadas há pouco instante, pois pequenas gotas de água pareciam orvalho por cima. E também um pequeno estojo de facas e garfos, igualmente antigo e de grande beleza, um porta joias de madeira envernizada, objeto também antigo e sentimentalmente belo, tendo por dentro duas alianças de ouro, um oratório bem parecido com o que ela tinha em casa e mais outros objetos que deviam ser de inestimável valor para a mulher. E também um cestinho contendo cerca de duas dúzias de ovos.  E no chão, estendidos pelo chão, uma caixa de ferramentas já faltando peças, um filtro de água, um ferro de engomar, uma cadeira espreguiçadeira dobrada. E ainda uma imitação de pedestal gótico de gesto desgastado.
Diante de tantos objetos, muitas vezes tão lindos e tão estranhos, e sem entender nada do que estava acontecendo, Carmen enfim perguntou por que estava mostrando todas aquelas coisas ali no quarto. E Leontina, com o olhar tristonho passeando por aquelas relíquias, disse, em voz baixa e embargada:
“Tanto aquelas galinhas e aquele galo como essas coisa aqui, tudo vai ser vendido pra pagar o advogado. É o que tenho no momento. A casa não é minha e não posso vender, e o que tenho por enquanto é isso pra saber quanto dão”.
Ao ouvir isso Carmen se jogou nos seu braços, chorando.

                                                      continua...





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sexta-feira, 2 de setembro de 2011

TEMPOS DIFÍCEIS (Crônica)

TEMPOS DIFÍCEIS

                                          Rangel Alves da Costa*


Diante de uma nova realidade, de um mundo novo que precisa tomar feição e rumo próprios, nunca é fácil para o forasteiro se firmar no lugar. Tudo existe ao redor, tudo é muito vasto e promissor, mas apenas diante do olhar que supõe sempre o melhor sem conhecer o que realmente existe.
Não era diferente naqueles sertões recentemente desbravados, quando a imensidão da caatinga se viu aberta em clarões e rústicas moradias começaram a se espalhar nas regiões mais altas. Nas altitudes mais elevadas por causa do clima, numa tentativa que o vento norte chegasse sempre ao entardecer para espantar o insuportável calor de verão e outras épocas do ano.
Um casebre, dois, um terreninho, uma pequena fazenda. Mais outra construção adiante noutro pedaço de terra já apossado, ali pertinho um curral, um cercado, e mais tarde outros forasteiros pedindo licença para se assentar, e num repente o lugarejo já era lugar de passagem de comboieiros, de viajantes, de pessoas que se maravilhavam com o lugarejo e arrumavam um cantinho para ficar.
Falar em maravilhamento nuns ermos iguais aqueles só mesmo pelos encantamentos próprios que o sertão possui e que muitas vezes confundia o novo habitante. Verdade é que a natureza, com suas características próprias, era realmente encantadora. Mesmo com a sequidão se espalhando de cima a baixo, as plantas, os bichos, os mistérios, os desconhecidos, as lendas, tudo isso embelezava demais aquela pacata vida.
Tanta seca e tanto sol, tanto mato e tanto bicho, tanto desconhecido e tanto perigo por todo lugar, nada disso ressoava mais forte do que a singeleza da vida, a alegria de se estender uma rede debaixo de um pé de pau e não querer pensar mais em nada, o acordar com o galo cantando e enxergar adiante o paraíso ao amanhecer: a passarada, a natureza se contentando com o seu marrom, os bichos correndo em busca de qualquer água.
Ao entardecer a mesma coisa, com o seu frescor chamando a noite para a cantoria embaixo do luar. Ai compadre, ai comadre, traga outro verso que quero alegrar coração, lembrar de alguém, dizer que não parta não! Traga uma cachaça boa que quero triscar os beiços, fumar um cigarro de palha porque hoje não tenho boca pra beijar!
No restante, por mais que a afeição pelo lugar afastasse toda dificuldade, a vida daqueles sertanejos naqueles primeiros momentos era das mais difíceis. E os tempos eram difíceis porque tudo dependia do querer da natureza. E a natureza não ia mudar porque ali local escolhido para conhecer a capacidade do homem de viver no inóspito e ainda assim se fartar do quase nada que a terra dava.
Na terra, estava a vida daquele povo civilizador, daqueles desbravadores do sertão. Mas fato é que na terra também estavam a dor e o sofrimento, pois o alimento, a água, o andar, o construir, tudo estava assentado na sua disposição para conceder ou não. E o que se via era sempre a terra seca, rachando por todo canto, os tanques, riachos e barreiros sem um pingo d’água, as sementes jogadas na terra servindo como comida de passarinho, a poeira quente tomando conta das estradas.
Para sobreviver em determinados momentos o homem tinha que alçar mão do preá, da nambu, da codorna, do teiú e outros bichos do mato. Matar um veado significava fartura pra muitos dias. Contudo, somente a carne da caça era muito pouco pra um povo acostumado com a farinha de mandioca, o milho, o feijão, o arroz. E para suprir a falta de outros alimentos se recorria às batatas da terra, aos brotos das plantas, aos cactos sem espinhos e aos frutos que no sertão sempre dão sem precisar de chuva, como o umbu.
Sem contar com facilidades em nada, a comida era preparada em panela de barro, fervida no fogão a lenha de fundo de quintal, com o braseiro servindo para estender as caças pequenas. Prato de alumínio, de estanho ou plástico, mas no mais das vezes uma cuia servindo tanto para a comida como para beber água. E esta, sempre mais preciosa que o ouro, tomando frieza no pote de barro, na moringa ou quartinha, como se chama por lá.
E quanta rede e quanta esteira espalhada por todo canto. Cama de vara, de estrado de ripa, tendo por cima, ou quando a casa era luxuosa, um colchão fininho enchido com capim macio. Muitas vezes o dono do colchão vivia eternamente doente sem saber que o pó formado pelo capim retorcido demais era veneno puro para as vias respiratórias.
Já os remédios eram os mais simples, porém muito mais eficazes do que todos os outros que surgiram depois. Açafrão, boldo, erva-cidreira, hortelã, macela, malva, mastruço, quebra-facão, quebra-pedra, velame e outros, fossem na raiz, no chá, na infusão, na maceração, tudo era na medida pra doença surgida, até mesmo aquelas levadas pelos mais recentes forasteiros.
Mas quando mesmo assim os remédios de quintal e mato não surtiam efeito pelo avançado ou medonhice da doença e a pessoa morria, então se cavava sete palmos de terra num chão mais afastado, e lá deitava o sertanejo no seu sonho de eternidade. Dois pedaços de paus formando uma rústica cruz assinalava uma saudade que doía muito mais ainda naqueles tempos idos.
E doía mais profundamente porque tudo ali era uma verdadeira e imensa família, a família sertaneja. E não como se vê hoje, apenas uma relação de parentesco tão fragilizada que o estranho pode se tornar muito mais importante do que um consangüíneo.



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De olhar em olhar (Poesia)

De olhar em olhar



Você nem passava
e eu já sonhava com seu olhar
o vento me trouxe um aroma
e imaginei o olhar daquele perfume
porque era curva na estrada
ouvi uma voz doce e encantadora
e senti a proximidade do olhar
e quando você se fez paisagem
confundi o olhar com tudo olhando
e quando mais se aproximou
que pude olhar dentro do olhar
vi um espelho e vi o infinito
nada na vida mais profundo e bonito
do que olhar e se apaixonar.


Rangel Alves da Costa

NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 18 (Conto)

NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 18

                                         Rangel Alves da Costa*


Dr. Auto ficou totalmente desarticulado diante da indagação da mocinha. Tinha vontade de dizer um monte de asneiras, de derrubar tudo que estivesse ao redor e até de agir com violência contra ela. Porém, num ímpeto, se conteve apenas para dizer:
“Agora você ultrapassou dos limites. A liberdade que dou não significa que possa usá-la para me falar com questionamentos como esses que me joga na cara, como se eu fosse um deslavado mentiroso ou um profissional que vive compartilhando meios escusos na defesa dos clientes. Ademais, é forçoso dizer, mas você não tem o direito de se intrometer desse modo no meu trabalho. Por respeito só vou dizer que não há nada por trás da defesa daqueles dois e se cobrei das próprias mães pela continuidade da defesa já foi pensando na desistência do apoio do deputado. Mas desse momento em diante, para o bem de todos e para que não ocorra nenhum imprevisto, você está de licença. Concedo-lhe férias, com todos os direitos trabalhistas, até o início do ano. Não veja isso como punição alguma, mas apenas para evitar que fique mais estressada logo na reta final da conclusão do seu curso. Até quero acreditar que o seu nervosismo e destemperamento tenha sido por causa da ansiedade nesses momentos tão importantes de término de curso. É preciso se preparar, pois ainda terá de prestar o exame de qualificação para o exercício da advocacia”.
Carmen se resumiu a responder que estava bem, que fosse desse jeito mesmo. Dali a dois dias entraria em férias, mas não antes de resolver uns assuntos pendentes ali mesmo no escritório. Contudo, como se quisesse deixar bem claro que não esqueceria nada do conversado e discutido ali, antes de sair se voltou seriamente em sua direção e disse, com voz firme e determinação:
“Nesses dias mais livres vou ter tempo de acompanhar uns processos que tenho muito interesse em saber do resultado”. Ao ouvir tal insinuação, o causídico quase sai correndo e se põe diante dela para perguntar quais processos que tinha tanto interesse em fazer o acompanhamento. Mas mesmo que quisesse não daria tempo, pois ela bateu a porta e saiu sem olhar pra trás.
Assim que Carmen deixou o local, o advogado continuou em pé, estático por alguns instantes, pensando, confusamente preocupado, num monte de coisas. Em seguida se voltou para o birô e deu um muro com a maior força que tinha naquele momento. Mais um soco, mais outro e depois baixou a cabeça até a madeira, batendo agora com as duas mãos. Ergueu o rosto transtornado, foi até a parede e bem diante da tela com a pintura a óleo soltou um verdadeiro grito: “Seus filhas da puta, apodreçam aí dentro!”.
Descontou sua raiva na parede com um chute, mas logo a seguir lembrou-se de telefonar ao Deputado Serapião Procópio e tal lembrança fez com que ficasse um pouco mais calmo: “Deputado, atendendo sua solicitação, por um bom tempo ficaremos livres das ameaças da secretária Carmen. Acabei de conceder férias até o início do próximo ano e quando retornar será despedida. Darei um jeito para que tudo aconteça assim...”.
“Melhor assim, melhor assim, sábia decisão. Ficaremos um pouco mais tranqüilos agora e mandarei imediatamente suspender um servicinho que já estava sendo providenciado...”. Ao ouvir isso do parlamentar o telefone quase cai da mão do advogado.
“Mas o senhor está ficando louco deputado, que servicinho é esse que mandou suspender? Se trata apenas de uma mocinha com um belo futuro profissional, pois tem perspicácia e é decidida. Respeito muito o senhor, mas não admito que tenha pensado em ultrapassar os limites. Será que não basta o que já estamos fazendo com aqueles dois pobres inocentes e suas humildes mães?”.
E o deputado respondeu em tom gozador:
“Não, não basta não. Aliás, nobre advogado, nada basta se é a nossa honra que está em jogo. Mas eu vou lhe dizer uma coisa antes que esqueça. Não basta que você tenha afastado a mocinha aí do escritório, mas tem de ter a certeza que ela não teve acesso aos processos, que não teve conhecimento da sua sem-vergonhice, das suas reiteradas mentiras, da sua defesa nojenta. Se ela souber disso é o mesmo que nada, não fazendo nenhum efeito que tenha se livrado dela apenas daí do escritório. Então, Dr. Auto, tem certeza que ela não sabe realmente de nada, que mais tarde não possa abrir o bico e nos jogar na lama?”.
“Mas claro deputado, ou o senhor acha que eu ia deixar que ela saísse daqui com bala na agulha. De jeito nenhum, e digo mais que os processos não estão nem conversando entre si, de tão escondidos que estão. Quanto a isso não se preocupe. E não esqueça de providenciar logo a outra parcela do nosso acerto. Ligue para os homens e diga que a condenação definitiva deve sair amanhã. Como não haverá recurso, após o trânsito em julgado passarão a cumprir a pena definitivamente, em regime fechado e o mais fechado que puder, numa pocilga ou num criatório de ratos”.
Feito isso, agora já demonstrava um semblante muito mais animador. Saiu para almoçar e o fez tranquilamente, se fartando como se nada daquilo tivesse acontecido há instantes atrás. Não lembrava realmente de nada, a não ser imaginando o que faria se após a condenação aquelas duas mães aparecessem novamente no escritório com o dinheiro para dar continuidade à defesa. Imaginou isso por um minuto e no instante seguinte já sabia o que fazer. Simplesmente pegaria o dinheiro e continuaria fazendo a mesma coisa, ou seja, absolutamente nada.
Enquanto o outro comia de lamber os beiços, com tudo regado a um vinho de renomada safra, Carmen Lúcia não tinha vontade nem de beber um copo de água. Abriu a porta do seu apartamento e imediatamente se dirigiu até um antigo oratório presenteado por sua avó. Ali, de joelhos, entregou-se a preces e orações, invocando a proteção divina para os difíceis caminhos que sabia que iria percorrer dali em diante.
Após esse devotamento decidiu que no dia seguinte visitaria aquelas duas mães sofredoras. Padecentes e enganadas.

                                                  continua...






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quinta-feira, 1 de setembro de 2011

SERTÃO - A TERRA PROMETIDA (Crônica)

SERTÃO - A TERRA PROMETIDA

                                       Rangel Alves da Costa*


A saga da civilização sertaneja, com seus inúmeros sacrifícios em meio a um mundo hostil e praticamente desconhecido, tem muito do relato bíblico do povo israelita em busca da terra prometida. Como o Senhor dizendo a qualquer Josué sertanejo, o desbravador daqueles longínquos tempos, “levanta-te e passa o Jordão, tu e todo o povo contigo, entra na terra que eu darei aos filhos de Israel. Todo lugar onde pisar a planta do vosso pé, eu vo-lo darei, como disse a Moisés”.
Josué, o conquistador bíblico, aquele que conduziria o povo de Israel à terra prometida, naquele mundão sertanejo se transformara no Josué caboclo, atrevido, também valente e lutador, e do mesmo modo conquistador vestido de sonhos, ornado de sol e de lua, levando a foice e o facão na mão para abrir veredas, tendo no alforje tudo que precisava para formar a nação sertaneja, fazer erguer a terra sertaneja prometida.
E quando é ordenado que o conquistador atravesse o Rio Jordão, ali se enxerga o São Francisco com suas águas servindo como verdadeiros caminhos na procissão de pessoas tomando o seu norte, fugindo das rebeliões e revoltas coloniais, em busca de um novo mundo, trazendo consigo seus animais e deixando para trás tudo aquilo que somente seria buscado quando a terra fosse conquistada, erguida a moradia e estabelecida de vez a nova realidade.
Está escrito em Gênesis 12: 1,3: “Ora, o Senhor disse a Abrão: Sai-te da tua terra, da tua parentela e da casa de teu pai, para a terra que eu te mostrarei. E far-te-ei uma grande nação, e abençoar-te-ei e engrandecerei o teu nome; e tu serás uma bênção. E abençoarei os que te abençoarem, e amaldiçoarei os que te amaldiçoarem; e em ti serão benditas todas as famílias da terra”.
E no Livro de Josué 21: 43,45: “Desta maneira deu o Senhor a Israel toda a terra que jurara dar a seus pais; e a possuíram e habitaram nela. E o Senhor lhes deu repouso de todos os lados, conforme a tudo quanto jurara a seus pais; e nenhum de todos os seus inimigos pode resisti-los; todos os seus inimigos o Senhor entregou-lhes nas mãos. Palavra alguma falhou de todas as boas coisas que o Senhor falou à casa de Israel; tudo se cumpriu”.
Assim foi feito também com relação ao sertão. A força divina na sua sabedoria, num dado momento tornou difícil a vida do homem no seu arraial, na povoação colonial onde era submetido pelas forças insurgentes ou quase escravizado pelas forças reinantes, e fez com com que saísse daquele lugar rumo a novos horizontes, novos caminhos onde pudesse se estabelecer futuramente com a família.
E foi assim porque o Senhor disse sai desse lugar que lhe aflige e maltrata, amedronta sua paz e a tranquilidade dos seus, põe em risco tudo que possuis e tende a arruiná-lo completamente. E como naqueles tempos coloniais as estradas eram quase inexistentes e não levavam além de poucos quilômetros, ele colocou a imagem caudalosa do rio em frente do seu olhar e disse que colocasse nas embarcações as criações que possuía e seguisse adiante.
E eis que o Velho Chico, o Jordão daquelas distâncias áridas e desoladas nordestinas, mais tarde chamado também de Rio dos Currais porque acolheu nas suas margens aquele viajante e o seu rebanho, foi o caminho mostrado para que, aos poucos, ao sabor de tantas lutas e privações, fossem sendo erguidos os pilares da terra prometida e mais tarde uma grande nação, a imensa nação sertaneja.
E o sertão prometido por Deus aos seus filhos foi se desenvolvendo na mesma medida que o homem tinha vontade de construir para si. As tantas dificuldades existentes para se formar uma grande nação não estavam também esquecidas na profecia. A desolação, a luta do homem contra a natureza bravia, as persisitentes negativas do meio em fornecer água para matar a sede, para molhar a terra e nela ver semeada a sobrevivência, tudo isso já estava previsto para esse novo homem, o homem sertanejo.
Mas por que doar tanto e nessa doação impor tantas dificulades e sofrimentos? Eis que o homem sertanejo também nasceu outro homem, adequado à sua terra, com sua mesma feição. Se fosse diferente, se tudo fosse fácil demais de se conquistar, aquelas vastidões se perderiam no seu destino e o homem e o seu mundo não seriam tão sertão.


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Queria amar (Poesia)

Queria amar



Sou o mar
queria ser o rio
queria amar
queria ser desafio
sou a nuvem
queria ser o céu
queria amar
queria tirar esse véu
sou o vento
queria ser ventania
queria amar
queria ter alegria
sou anoitecer
queria ser amanhecer
queria amar
queria tanto enlouquecer
sou a prece
queria ser oração
queria amar
queria feliz coração
sou igual
queria ser diferença
queria amar
queria sua presença
sou sólido
queria ser de beber
queria amar
queria tanto você.


Rangel Alves da Costa

NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 17 (Conto)

NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 17

                                         Rangel Alves da Costa*


Se pudesse, após ouvir as últimas palavras entremeadas de falsidades, Carmen daria um murro certeiro na cara de mentiroso do advogado, ainda que seu patrão. O mau-caratismo não possui hierarquia nem subordinação. Completamente tomada por uma aversão quase descontrolada com relação ao dito, para o bem resolveu apenas que já estava na hora de se retirar para o almoço.
Saindo rapidamente evitaria o pior, não correria o risco de dar com a língua nos dentes e esculhambá-lo ali mesmo, naquele momento, jogar-lhe na cara um monte de coisas que estavam entaladas na garganta, dizer que ele não valia a distinção de advogado que ostentava e muito menos o respeito dos clientes, principalmente daquelas duas mães. Já ia juntando as coisas para sair quando lhe foi afirmado:
“Minha cara Carmen, pelo jeito você não acreditou muito nas minhas palavras. Não fico afetado com nada disso. Sempre dizem que advogado tem duas caras, duas conversas, é um mentiroso instintivo, coisas desse tipo. Digo, porém, que existe o advogado no homem e o homem no advogado, e dessa vez quem lhe falou foi o homem no advogado, que não iria mentir de jeito, principalmente para uma pessoa igual a você”.
“Mas eu não pensei nada Dr. Auto, e não pensei porque o senhor é dono de sua própria verdade e a expressa como bem entender. Não estou aqui para julgar seu caráter nem o que faz ou deixa de fazer, mas acho que não seria nada demais ser mais realista. Ou será mentir viver a realidade, aceitar que são outras as verdades e ter a consciência que a perfeição não cabe em nenhum ser humano terreno e, por isso mesmo, o reconhecimento dos erros é uma forma humilde e inteligente e de se arrepender dos pecados cometidos e se aproximar mais da pureza da consciência?”.
Dr. Auto agitou-se no mesmo instante, começou a ficar nervoso e, sem saber até onde ela queria chegar com tais palavras, pediu para que fosse mais clara. Então Carmen, que já havia perdido a fome mesmo e agora ganhava força para dizer-lhe logo umas verdades, colocou a bolsa novamente em cima da mesa, afastou-se um pouco do birô e disse:
“Quem é que cabe ali dentro daqueles móveis com tantos processos dos clientes, é o advogado ou o senhor? Quem procura resolver todas aquelas questões, dirimir aqueles conflitos, buscar justiça para aqueles clientes, é meramente o advogado ou também o homem? Quem conversa e diz a verdade sobre os processos com os clientes, é simplesmente o advogado ou também o homem? Agora a pergunta que não quer calar: quem está aí agora mentindo, falseando quase tudo que diz, é o advogado ou o senhor?”.
Dr. Auto ficou com uma indescritível feição, ainda em pé, encontrou um lenço no bolso e procurava enxugar o rosto que suava em goteiras. Vermelho ou de indefinida cor, agitado, não abria a boca para nada, parecendo ter perdido todas as forças de expressão. Mas Carmen continuou:
“Talvez tanto o advogado como o homem sejam corretos demais, insuspeitáveis, mas é nesse aspecto que mora toda fragilidade humana. Enquanto o homem advogado passava tranquilidade aos seus clientes, dizendo que tudo ia bem, tudo ia ser resolvido o mais rapidamente possível, o advogado homem vinha sendo criticado pelos clientes, que por muitas vezes vieram até minha pessoa reclamando de um monte de coisas, falando das desconfianças e do medo que se abatiam diante das incertezas. Ora, os processos estão todos copiados ali e o senhor é a maior testemunha do que fez ou deixou de fazer. Desse modo, se o homem advogado se acha o verdadeiro rei, saiba que o advogado rei está muito, mas muito sujo mesmo perante o reinado do advogado homem. Um dos dois precisa mudar, ou talvez os dois, porque o que foi dito àquelas pobres mães nem um o mais vil crápula diria a um condenado, quanto mais uma pessoa quis se diz advogado tão honesto...”.
Nesse momento ele não suportou e encontrou forças para dizer alguma coisa: “Mas você andou remexendo nos processos daqueles dois, você foi bisbilhotar em assuntos que somente a mim dizem respeito? Você sabe que naquelas pastas estão verdadeiros segredos e que somente eu posso ter acesso...”.
“Mas eu sempre tive acesso a tudo que há nesses arquivos. Ademais não podia trabalhar sem estar remexendo e revirando tudo aquilo ali e o senhor bem sabe o quanto de peças já produzi a partir daquela documentação. Mas uma coisa eu posso lhe garantir agora, para ver se tira de vez essa inexplicável tensão: nunca revirei, olhei ou remexi numa página sequer dos processos envolvendo Paulo e Jozué. Quanto a isso pode ficar despreocupado que não sei e nem pretendo saber de nada que há ali dentro. Contudo, como não sou surda, não pude deixar de ouvir aquelas duas mães em polvorosa, quase morrendo ali sentadas porque o senhor simplesmente afirmou que não havia mais jeito e que os dois rapazes já estavam condenados. E que tipo de advogado é esse, que ao invés de passar alento, de dizer que o trabalho foi realizado no sentido de que os dois sejam absolvidos, vai logo condenando os clientes antes que o juiz assine a sentença? Mas o pior foi ouvir delas que o senhor havia afirmado que os dois seriam condenados e mesmo assim o seu trabalho acabava aí, que não iria mais prosseguir na defesa porque o deputado não iria mais pagar os seus honorários, e se quisessem pagassem do próprio bolso. E é verdade que mandou a coitada da mãe de Jozué vender tudo que tinha para lhe pagar, acaso quisesse que continuasse defendendo o seu filho? Responda Dr. Auto, responda que não acreditei no que ela disse, mas vou acreditar no que o senhor disser...”.
Quando falou que não havia visto nenhum daqueles processos envolvendo os dois, Carmen mentiu premeditadamente. Teria de ser assim, jogando a isca na boca do tubarão. E o advogado, quase fora de si, não respondeu nada, procurou apenas desconversar:
“Mas você mexeu na minha papelada, você pode muito bem ter mexido nos processos daqueles dois”. E correu para o móvel e de lá saiu com os dois processos, bem seguros debaixo do braço, como se estivesse com medo que alguém tentasse tirá-los dali. Rapidamente se dirigiu até sua sala, guardou-os no cofre particular e depois retornou mais calmo. Coisa que durou somente um instante, pois no momento seguinte Carmen perguntou:
“O que o senhor procura esconder tanto com relação a Paulo e Jozué, será o erro do advogado ou do homem?”.

                                                  continua...






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