SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



sexta-feira, 3 de agosto de 2012

ESTÓRIAS DOS QUATRO VENTOS: ALI O SILÊNCIO, ALI A SOLIDÃO... (Final)

                                        
                                                    Rangel Alves da Costa*


Ao descer mais uma vez até ali, a querubim nem procurou se apresentar diante da mulher, agora mais parecendo uma velha sentada na sua cadeira de sempre. Já sabia como ela estava, também sabia que não adiantava mais fazê-la prometer nada. Havia prometido demais, tanto durante a visita noutros tempos como intimamente.
E nada adiantou, e nada parecia adiantar. A própria querubim já havia recebido ordem superior para deixar apenas que o destino se cumprisse. Não restava outra coisa senão entregar naquelas mãos o seu próprio futuro. A intercessão divina agora se bastava no já escrito.
Pessoas existem que merecem atenção e cuidado especial lá de cima, e por isso mesmo recebem proteção um tanto diferenciada. Eis o reconhecimento por uma vida afastada o quanto possível dos pecados. Mas tal olhar não possui qualquer valia quando o livre arbítrio da pessoa tudo faz para seguir por caminhos que não deveria.
Era realmente uma situação difícil de entender. Tudo havia sido feito para motivá-la, colocar em sua mente que poderia viver de uma forma bem diferente, conhecendo outros lugares, outras pessoas, outros modos e costumes. Não precisava abandonar sua moradia, mas também não poderia ficar ali enclausurada como insistiu em permanecer.
E num quarto fechado, sombrio, sem a penetração da luz da vida e da realidade do mundo, sempre tenderá a escurecer mais ainda, e cada ponto de luz que for avistado será tido como algo que vem para assustar. Assim Crisosta permaneceu desde o falecimento dos seus e do mesmo modo insistia em continuar até o fim dos seus dias.
Diante dessa situação, com a certeza de que dispunha somente de um instrumento para utilizar, antes de entrar na casa a querubim foi até o local onde a pedrinha permaneceu durante aqueles anos todos, sempre esperando que a mão de sua dona fosse buscá-la, recolheu-a e se ergueu com ela à mão. Já sabia muito bem o que fazer no instante seguinte.
No momento seguinte já estava dentro da casa e ao lado da indiferente senhora. Tocou-a no ombro, passou a mão pelos seus cabelos, chamou o seu nome. Crisosta, Crisosta! Ela ouviu, voltou o olhar para a visitante e os seus olhos se encheram de lágrimas. Coisa difícil de acontecer, mas neste momento a querubim também chorou. E cortou o silêncio para dizer:
“Oh, minha filha, o que fizeste da tua vida! Em nada se parece com aquela que anos atrás conversei por tanto tempo ali fora, ali mesmo naquele local adiante da janela. Lembra? E lembra também sobre o que conversamos e as promessas que fizeste? Ora, minha linda, Deus tanto se alegrou com o que prometeste, e muito tristonho ele está agora pela vida sofrida que decidiu carregar. Como boa filha, estará te esperando sempre, mas gostaria que não fosse agora, não fosse tão cedo. Mas tudo ainda depende de você, isso ele me garantiu. Oh, o pai misericordioso sempre dá muitas oportunidades às pessoas de bem, de bom coração, que são virtuosas aqui na terra. E o que fará agora, minha linda, hein, diga-me? Pode continuar com o teu silêncio que compreendo muito bem. Até já ouço tuas doloridas palavras. Partirei agora, esperando revê-la qualquer dia, mas antes trouxe um presente. Estenda-me a mão. Tome, segure isso aqui. Depois de eu partir olhe para sua pedrinha, o seu amuleto que tanto gosta, converse com ele e decida o melhor a fazer. Até...”.
Num segundo e a visitante desapareceu. Ao ouvir sobre sua pedrinha, se encheu de contentamento. Foi realmente despertada para uma realidade que desde muitos anos não experimentava. Abriu a mão, começou a acariciar o pequeno objeto e diante dos seus olhos e, como cenas de filmes, começaram a surgir situações maravilhosas na vida. E em todas, ela feliz, correndo, brincando, conversando com pessoas, caminhando por lugares maravilhosos.
Fechou novamente a mão e começou a pensar sobre tudo de bom que não havia feito na vida, as oportunidades perdidas, o quanto poderia ter maravilhosamente vivido se não se entregasse somente àquela vida fechada, reclusa, feita prisioneira do tempo, ali em eterna vigília do silêncio e da solidão.
Ainda pensava sobre tudo isso quando olhou adiante e viu aquela mesma pessoa com a sua feição, e que não podia ser outra senão ela mesma, toda vestida de preto, roupa longa abaixo do joelho, de mala na mão, e dando adeus. Depois se virando e pegando a estrada.
“Me espere, me espere!”. Gritou Crisosta. E completamente enlouquecida saiu correndo naquela direção. E pela estrada eram duas, mas uma só. Não se sabe se ela mesma ou a outra, mas um vulto seguia ao longe, de vestido longo e preto, levando mala e destino na mão.

FIM  


  
Poeta e cronista
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quinta-feira, 2 de agosto de 2012

UMA VELA ACESA

Rangel Alves da Costa*


Ai se os meus olhos, diante dessa vela acesa, apenas enxergassem a luz, apenas vissem a chama, apenas sentissem o lume tremulando o seu instante! Ai se meu olhar não se transformasse em chama, não brandisse aceso, não subisse aos céus! Eis que essa vela acesa surge diante de mim além do objeto, além da cera e pavio, para receber minha fé e ser muito mais do que apenas a valsa da luz a flamejar na semiescuridão.
Não sei perante os outros, vez que a fé, a devoção e a religiosidade são muito próprias em cada um, mas em mim o ato de acender uma vela é o mesmo que entrar numa igreja, que assistir missa, que subir na montanha para segurar na mão de Deus, que dialogar com a divindade sobre o meu ser tão sem palavras. No fósforo, o passo, no pavio, o templo; na chama, o portal.
Manhã ou noite, qualquer hora que sinta necessidade de fortalecimento espiritual, de proteção, na intenção de alcançar uma graça, a pessoa segue em direção ao oratório ou qualquer outro lugar onde possa expressar sua fé, e então, após o ritual de chegada, acende uma vela e põe-se contrito para que a mente e os lábios leiam o livro da alma:
“Eis-me aqui, ajoelhado a teus pés, orando a prece maior, invocando aos céus e pedindo do fundo do peito que atendei os meus clamores. Eis-me aqui, cheio de fé e de devoção, humilde servo do teu piedoso gesto, clamando um clarear meu destino nesta estrada sombria. E veja, e sinta o meu semblante nesta vela acesa!”
Após esse instante de clamor e devoção, de expressão da espiritualidade religiosa e da fé, a pessoa retoma o seu cotidiano e a vela fica flamejando no seu cantinho. Para alguns, a cera e o pavio que vão queimando lentamente fazem parte apenas daquele momento ritualístico, sem qualquer importância futura. Já para outros é bem diferente.
Diferente, e com razão. A simples vela em si, enquanto objeto de cera com um pavio no seu interior e que serve como fonte de luz, já é vista de modo diferenciado. Quem deseja iluminar um ambiente onde não há energia elétrica, o faz com candeeiros ou lampiões, mas não especificamente com vela. Ao ser adquirida, esta certamente terá por objetivo outro uso, que será o religioso.
Mesmo quando são adquiridas para fins decorativos, as velas não perdem aquela feição de religiosidade. As pessoas apenas transferem o uso nas igrejas para suas residências. Do adorno ritualístico, tão comum sobre a mesa na celebração de missas e batizados, onde geralmente são colocadas em castiçais por cima de toalhas lindamente trabalhadas, passa a enfeitar os ambientes residenciais. E ainda aí aquela inspiração religiosa.
E basta que uma dessas velas seja acesa para ganhar outra significação, e já diferente da que se tem na igreja. E isto porque uma vela acesa na igreja não possui a mesma intencionalidade espiritual que uma acesa dentro de um lar. Ali é abrangente, amplamente significando a chama da crença e da fé, a presença divina, enquanto cá, no recanto de cada um, tem-se essa crença e essa fé internalizada espiritualmente, expressando o sentimento mais íntimo.
Ainda nesse passo, cabe ao olhar que se lança sobre a vela dar o seu significado. Seja na igreja, no lar ou em qualquer outro lugar, a vela não passará de simples chama se do seu fulgor flamejante não surgir um portal para o encontro com a divindade, a santidade, os seres angelicais. Diante da chama, a cada um caberá saber caminhar por entre seus mistérios, sua força e a intencionalidade do ser diante da luz.
O olho que mira a vela, sente a chama amarelo-avermelhada dançando para iluminar, não se contenta em apenas sentir a claridade, pois logo sente que o seu espírito procura ultrapassar aquela luz e logo se transformar numa momento indescritível: sentir a presença maior, se envolver por incontida fé, se entregar aos rogos para ser ouvido. É um diálogo tão intenso, travado entre o semblante e a chama, que de olhos fechados a pessoa se sente como iluminada.
E tão iluminada que pode enxergar a face de Deus!

Poeta e cronista
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Amor noutros tempos (Poesia)



Amor noutros tempos


Saia da janela
venha pra varanda
que o dia anda
quero te avistar
vou fazer buquê
com a outra flor
que quero entregar
duas belas flores
imenso jardim
tanta paz no olhar
que suave aroma
o teu lábio pétala
eu quero beijar

saia da varanda
venha pro jardim
não suporto mais
saudade sem fim
venha se encantar
com lindo presente
que quero te dar
olhe para cima
olhe para o ar
a nuvem passando
aos olhos amantes
muita coisa há
coração desenhado
uma face sorrindo
e a palavra amar.


  
Rangel Alves da Costa

ESTÓRIAS DOS QUATRO VENTOS: ALI O SILÊNCIO, ALI A SOLIDÃO... (Penúltimo capítulo)


                                                   Rangel Alves da Costa*


Colocou a cadeira ao lado da janela porque sabia que não podia mais evitar sentar ali. Durante muitos anos afastou o velho assento daquele local porque sabia do seu doloroso significado. Era como balançasse a vida desafortunada.
Sentada, não fazia outra coisa que não ficar horas a fio olhando o mundo lá fora. Olhar sem enxergar nada, sem distinguir um objeto sequer. Os olhos ficavam voltados para as paisagens, mas com o pensamento fazendo turbulentas viagens, remoendo o passado revivendo dores, tendo saudades, recordando até do que não havia feito.
Assim, depois que tirou a cadeira do seu balanço esquecido, do seu esquecimento no quarto empoeirado, não fazia mais outra coisa senão ficar sentada o dia inteiro debulhando tristeza, chorosa, numa aflição terrível que nem mais sabia o porquê.
Se alguma coisa acontecesse lá fora era mesmo que nada, pois os olhos só olhavam sem avistar. Se o belo príncipe ali passasse no cavalo alado não seria avistado; a carruagem adornada esperando a princesa também não. Quando a ventania açoitava, o seu rosto chegava a estremecer, a se agitar, os cabelos desalinharem. Mas o olhar nem se movia.
Por diversas vezes o seu irmão e o seu amiguinho caçador passaram adiante, acenaram, chegaram bem pertinho de onde estava, mas era tudo como se ela não estivesse sentindo a presença de ninguém. Chegavam mais perto, faziam gracejos, falavam coisas sérias e nada de ela dar a menor atenção.
Seus pais e sua irmã tanto rondavam a casa como nela entravam, mexiam em cacarecos, derrubavam coisas, faziam tudo para ela despertar daquela dolorosa letargia. Certa vez, a irmã colocou o seu filhinho bem no colo da irmã, balançou a cadeira, cantou uma cantiga de ninar, e o que se viu foi apenas mais uma lágrima escorrendo pelo canto de seu olho.
Aquela casa tão simples, porém tão arrumada e cheirosa, com pão sobre a mesa e Bíblia com página marcada com pena de asa de anjo, e que por isso mesmo há muitos anos havia causado tanto espanto na moradora, nem de longe existia mais. Poeira, pó, folhas secas, garranchos, estranhezas trazidas pelo vento, tudo se acumulava por cima de tudo, pelos cantos e até debaixo das camas.
Passavam anos e mais anos sem uma vassoura se arrastar pelos cantos, sem qualquer limpeza, sem um pano afastando o empoeiramento que se acumulava aos montes, e nesse percurso as coisas continuando numa deplorável normalidade. Quase não comia, quase não bebia. Muitas vezes colocava uma panela no fogo e esquecia por lá. Só restava uma panela, nada mais do que dois pratos, um ou outro talher. O resto já havia sido jogado fora.
Contudo, a higiene pessoal era como se fosse automática, mecânica, tendo de acontecer todo dia. Tomava banho ao levantar, vestia uma roupa limpa, porém a mais comprida e enegrecida que houvesse. E por isso mesmo desde muito já vestia as roupas guardadas de sua falecida mãe. Após o uso, se punha a lavar e estender no varal e depois seguia até sua cadeira de balanço.
O seu anjo da guarda, coitado, nem sabia mais o que fazer. Intimamente, sentia-se quase um anjo ineficaz, impotente, sem ter qualquer força de guarda. E não somente isso, pois se sentia também entristecido por fazer o que estava a seu alcance e não conseguir mudar nada naquela situação. Por consequência, de vez em quando estava pelos cantos chorando, lacrimejando como se aquele infortúnio todo também estivesse recaindo sobre si.
Por isso mesmo se ausentou diversas vezes de sua guardiada para ir lá em cima apresentar relatórios e mais relatórios sobre aquela deplorável situação. E numa dessas vezes disse que se achava impotente demais diante do caso e que rogava uma urgente intervenção perante a sofredora, sob pena de ser tarde demais. O anjo temia o enlouquecimento e depois a morte rápida.
Foi pela ação do anjo que a querubim foi novamente incumbida de descer até ali para tentar resolver o problema. Já conhecia tudo, sabia de tudo. Lá de cima vigiava cada passo da mulher aqui embaixo, sem falar que de vez em quando estava por ali fazendo alguma coisa para tentar alegrar aquele coração de difícil trato.
Foi ela que limpou a casa e perfumou-a, preparou-a para uma nova vida. Estava ao seu lado quando, ajoelhada aos pés do oratório, jurou uma vida em transformação. Porém não pôde continuar fazendo mais se tudo praticado era novamente desfeito. Crisosta prometia e descumpria, jurava a si mesma mudar e no dia seguinte já fraquejava, e assim foi deixando os sentimentos ruins afastar de vez seu poder de reação e acabou dominada pelos fantasmas do silêncio e da solidão.
E agora a querubim sabia que só restava uma saída, que só podia fazer uma coisa. Era a única e última oportunidade de salvação. Ou ela abraçaria a chance ou a quase morte de um dia já muito ido acabaria se confirmando.
Continua...


  
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quarta-feira, 1 de agosto de 2012

CASA DE BARRO (E A FAMÍLIA TAMBÉM) (Crônica)


                                           Rangel Alves da Costa*


Depois da estrada de chão, entrando numa vereda de mato rasteiro, logo adiante se avistava o descampado. E no meio dele a casa de barro.
Barro batido, feito parede na ripa presa à corda de caroá. Barro visguento, jogada de longe e tomando a direção certa. Um monte aqui outro acolá e a parede ia sendo formada. Depois de seca era uma parede qualquer, firme, forte, até que as intempéries permitissem.
Casa de barro batido, levantada já com mais de sete anos. A sala da frente, dois quartos, a cozinha. Só isso. O banheiro era um quartinho feito de palha de bananeira, lá depois da porta de trás.
A cobertura era de telha sim, mas de areia sem visgo, presente de um político em eleição passada. Já carcomida pelo tempo, quebrando as pontas, desfazendo as juntas, deixando passar pingo d’água quando chuviscava.
Na chuva, com goteira por todo lugar, as águas caíam e iam formando poças por cima do chão de terra batida. Não molhava os móveis, os enfeites, as roupas, a cristaleira, a mesa coberta de toalha rendada, simplesmente porque nada disso existia.
Existiam sim, dois meninos, um pai e uma mãe, uma família completa, inteira, e bem sertaneja. João o maiorzinho, José o menorzinho; a mãe era Sebastiana; Beraldo o pai. E também um cachorro, um gato, um papagaio...
Madrugada ainda, tempo fechado, horizonte ainda escurecido. O galo nem havia cantado ainda sua manhã e a porta já era aberta. Apenas aberta pelo barulho do ferrolho, mas sem ninguém aparecer ainda.
Sons de panela batendo, alguma coisa caindo, uma madeira rangendo, uma voz e uma palavra. Ninguém ainda na porta da frente, mas já movimentação na porta de trás. Beraldo ajeitava o feixe de lenha para acender o fogo, enquanto Sebastiana deitava a cuia no tonel enferrujado para pegar um pouco d’água.
A água era pouca, economizada com o maior cuidado. Só era usada para fazer comida e coada para ser bebida. Depois de coada ia pra moringa, depois pra janela e para o milagre da vida.
Ninguém há de negar que não coisa mais saborosa no mundo do que água de moringa, adormecida na janela e em noite de lua cheia. Faz o milagre de matar a sede e de curar doença, de afastar a fadiga e trazer vigor. Tem gente que guarda uma ao lado da cama.
Pois bem. Depois de pegar a cuia d’água, jogar o líquido numa vasilha antiga e amassada de alumínio, a mulher olhou pro marido acendendo o fogo e disse que mais uma vez não tinham nem um naco de pão pra dar aos meninos quando levantassem.
Beraldo não olhou no olho da esposa e ela bem sabia o porquê. O coitado lacrimejava toda vez que ouvia coisa daquele tipo. Trabalhava feito um desgraçado debaixo do sol, cuidando da terra dos outros, limpando, coivarando, mas não tinha jeito de sair daquela maldita pobreza.
Perguntou se ainda tinha farinha. Ainda restava um tiquinho. Então despeje um tanto numa xícara e outro tanto noutra, depois jogue café por cima. Não há comida melhor quando não se tem nada. E a gente bebe um gole de café e fica de barriga cheia, ao menos em pensamento. Disse o entristecido Beraldo.
João, o maiorzinho, já havia levantado e saído porta afora. José, o menorzinho, continuava no chão do quarto fazendo a primeira refeição do dia. Metia os dedos no barro da parede e vinha com a terra na mão. Comia tudo que se lambuza. O coitadinho era só couro e o osso, mas uma barriga imensa e cheia de verminoses.
O maiorzinho tentava matar um calango pra assar quando olhou pra cima e saiu em disparada. Entrou porta adentro e foi dizer aos pais que a trovoada vinha que vinha, feroz, sedenta.
Já quase três anos sem chover, quando as chuvas chegaram foi coisa de arrepiar o cabelo, promessa ser revertida, rogos voltados agora para a água não acabar com tudo. Mas ela não deu ouvidos e caiu com toda força, rolou terra acima e ribanceira abaixo, tanto enchia tudo como levava o que encontrasse pela frente.
Como era triste de se ver aquela família sofrendo debaixo de um pé de pau. Olhavam pra casa de barro e só avistavam lama. Que bom se todo mundo fosse feito de ferro, de aço, de fibra. Mas não.
A família também era de barro.


  
Poeta e cronista
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Passarinho (Poesia)



Passarinho


Nunca mais
fiz meu ninho
nos quintais
das moças nuas
nunca mais
pousei o canto
no varal
das moças belas
nunca mais
passarinhei
nos umbrais
das moças virgens
nunca mais voei
passei por lá
para cantar
minha paixão

moça virgem
moça bela
tão meiga
linda donzela
vou sair
desse lugar
estou de voo
de partida
vou pousar
o meu voar
noutra janela
onde outra
moça bela
quando olhar
o passarinho
aceite me namorar

cantarei
o canto pássaro
um gorjeio
beira-flor
melodia beija-flor
canto dizendo
meu amor
cantar apenas
amor...


  
Rangel Alves da Costa

ESTÓRIAS DOS QUATRO VENTOS: ALI O SILÊNCIO, ALI A SOLIDÃO... (98)


                                                Rangel Alves da Costa*


Verdade é que a agora senhora Crisosta havia adiado demais tudo que podia fazer na vida. Deixando sempre para amanhã, depois e qualquer dia, acabou relegando os sonhos ao plano do esquecimento. Ainda haveria tempo?
Tempo haveria sim. Ainda que tivesse cem anos haveria tempo, ainda que deixasse para amanhã, haveria tempo de fazer depois. Contudo, não só a vontade de fazer, mas a tomada de atitude era essencial. De nada adiantava abrir a cancela sem querer sair, arrumar a mala sem querer partir, fechar a porta sem querer partir.
Quebrou o espelho, jogou fora cada caco de vidro. Depois de tanto tempo sem se ver, jamais imaginava que estava com o semblante tão envelhecido. Não estava velha, não estava carcomida pelo tempo, contudo não pôde deixar de enxergar fios esbranquiçados de cabelos, a perda do brilho e da formosura da pele, os traços fisionômicos já traçando mapas dos tempos idos.
Quebrou o espelho e chorou. Chorou muito. E chorando dizia a si mesma que havia feito tudo para aproveitar mais a vida, para viver melhor, para se alegrar com tudo que houvesse ali rodeando o seu mundo. Disse que não tinha culpa se estava condenada a viver ali e sempre ali, cotidianamente em meio ao silêncio e à solidão. E como não sofrer numa situação diante de uma vida assim, de uma situação dessas?
No lugar do espelho colocou uma fotografia antiga. O retrato mostrava a menina de sorriso querendo voar dos lábios, mas a cor e a moldura estavam nas mesmas condições da retratada naquele momento: sem brilho, sem boniteza, sem vida. No instante seguinte jogou o retrato na parede de barro. Restaram pedaços de barro e da menina.
A partir desse dia, passou mais de ano se esforçando o quanto podia para não desabar de vez, para não retornar a cadeira de balanço ao seu lugar diante da janela e ali se entregar de vez ao silencioso e doloroso sofrimento. Rezava muito, fazia muitas promessas, caminhava pela malhada de Bíblia na mão e lendo em voz alta o que achasse interessante. Difícil de acreditar, mas sentia-se mais confortada ao ler passagens que tratavam de solidão:
“Quantas vezes no deserto o provocaram, e na solidão o afligiram!” (Salmos 77,40).
“Erravam na solidão do deserto, sem encontrar caminho de cidade habitável. Consumidos de fome e de sede, sentiam desfalecer-lhes a vida” (Salmo 106, 4-5).
“(...) as estacas sagradas e os monumentos ao sol não se erguem mais, porque a cidade forte é agora uma solidão, uma morada abandonada como o deserto. Aí vêm pastar os bois e aí pernoitam e comem os seus ramos” (Salmo 27, 9-10).
“Tornaram-na uma solidão e apresentaram-na a meus olhos enlutada e devastada. Desolada ficou toda a terra, pois que ninguém mais a toma a peito” (Jeremias 12,11).
“Assim, dirás: Senhor, fostes vós que declarastes a destruição desta cidade, que se tornaria inabitável para homens e animais, transformando-se em solidão eterna” (Jeremias 51,62).
“Ide, filhos meus! Ide! Quanto a mim, permanecerei na solidão” (Baruc 4,19).
“Dize-lhe: eis o que diz o Senhor Javé: é contra ti que venho, monte de Seir; eu vou levantar a mão contra ti. Farei de ti um deserto e uma solidão” (Ezequiel 35,3).
Solidão, solidão, solidão, Crisosta vivia e respirava a solidão, infelizmente era assim. Como a areia da praia que se amolda ao gosto das ondas que chegam e voltam, como o areal que se forma e se dissipa ao sabor do vento, como o ser humano que se amolda à vontade do tempo, assim era a entristecida mulher cultivada na solidão.
Quando não pensava na solidão lhe afligindo, a imaginação se voltava para o temor de um monte de coisas. Então começava a pensar no futuro, no envelhecimento total, na perda das forças físicas, nas tantas doenças, na cegueira, na morte, na morte, na morte...
E o pior, morrer sozinha e sem ninguém saber, sem uma vela acesa, sem uma prece, sem uma sentinela, sem uma encomendação de alma, sem pranto, sem voz dolorida, sem ninguém velando o seu corpo sem vida, sem ninguém que vestisse a mortalha, que espalhasse água de cheiro sobre o seu cadáver, que desse adeus, que chorasse, que a levasse à cova rasa. Sem cruz, sem dia, sem sétimo dia, sem luto, quase sem morte. Apenas a morte da solidão.
Ao pensar em tudo isso não se negava a chorar. E novamente não sentia mais fome, não tinha vontade de fazer quase nada. Paisagens sem cor, mundo nublado, tudo sem graça, tudo desgraçadamente triste. Tudo novamente tão silêncio entrecortado por soluços e solidão com os próprios fantasmas ao redor.
Até que um dia, já decidida a viver assim mesmo o sofrimento até chegar ao seu fim, foi até o quarto e trouxe a cadeira de balanço para a sala. E colocou-a diante da janela.
Continua...


  
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