SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



sexta-feira, 22 de novembro de 2019

Palavra Solta – espelho



*Rangel Alves da Costa


Sou eu, e apenas eu, dentro de mim, mas também exteriorizando o mesmo eu que não se oculta em qualquer outro ser. Jamais ser além do que pretendo ser e ser apenas o que sou. E apenas isso. Ser minha própria imagem e semelhança. Ser apenas o que gosto de ser, o que gosto de fazer, o que me traz praz e contentamento. Eu bem que poderia estar pisando no asfalto, passeando pelos shoppings ou pelos calçadões, mas eu estou aqui. Eu bem que poderia ser adorador do terno e da gravata, devoto do anel no dedo, abnegado ao termo “doutor”, mas eu estou aqui do jeito que você é e como você está. Eu bem que poderia chegar, fazer o que eu tenho a fazer, e depois simplesmente partir, mas eu vou onde você está. Eu bem que poderia simplesmente passar por você, fazer que nem lhe reconheço mais e seguir adiante, mas eu lhe conheço sim, falo sim, abraço sim. Eu bem que poderia caminhar pelas rodas de um carro, avistar o mundo atrás de um vidro fumê, sequer buzinar perante sua presença, mas eu vou caminhando e sorridente até onde você estiver. Eu bem que poderia não me esforçar para lembrar o seu nome, mas sinto necessidade de lhe chamar como é conhecido e relembrar sobre tudo o que sei.


Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com

quinta-feira, 21 de novembro de 2019

O CAFÉ SAGRADO



*Rangel Alves da Costa


De vez em quando a gente sente uma vontade danada de dividir um cafezinho com algum amigo, com alguém que a gente gosta muito. Um reencontro, uma palavra, um afago ao coração. Mas hoje está tão difícil de ter verdadeiros amigos que mereçam um cafezinho, então apelei demais nos meus desejos e sentimentos.
Como Deus é também onipresente, está por todo lugar, eis que de repente decidi surpreendê-lo. E convidei-o para tomar um cafezinho. Para minha surpresa, o bom homem aceitou. Só impôs uma condição: café batido em pilão, peneirado em quintal, preparado em bule de fogo de chão.
Ora, a grandiosa expectativa de ter Deus dividindo um cafezinho comigo me fez conseguir o que desejava ainda no entardecer do mesmo dia. Assim, quando a noite abriu a sua boca para chamar a lua, os poleiros dos quintais já ficando apinhados e o homem do sino se preparando para o anúncio da Ave Maria, bastou que eu abrisse um pouquinho a chaleira e do nada o bom homem surgiu já sorridente.
Uma xícara apareceu na sua mão com o café já dentro. Começou a saborear sem necessitar levar a borda à boca. Em seguida gesticulou convidando-me a acompanhá-lo. Segui-o levando xícara, apreensivo pelo que poderia ouvir. E então, do lado de fora da porta, perante as sombras do anoitecer já com raio de lua, ele colocou a mão no meu ombro e disse:
“Quem faz o grão do café também faz o açúcar. Mas a mistura cabe ao homem. O amargo e o doce estão na medida de cada um. Há quem não goste de açúcar, há quem adoce demais. Porém nada disso possui relevância se não souber sentir o sabor. Mesmo o sabor amargo pode possuir a doçura da lição para o amanhã. E a próxima xícara da vida certamente saboreada de forma diferente”.
Eis o bom homem falando suas verdades através de parábolas, logo imaginei. Mas tão ricas suas palavras que uma só imagem servindo para as mais diversas situações. Pela boca de Deus, por exemplo, o sal não significa apenas o elemento granulado e ácido, mas a própria luta, o trabalho, as dores, os sofrimentos, o sentido da preservação. E assim é que surge o sal da terra como a força poderosa de renascimento, eis que em seu seio a química da conservação do homem, da vida, da própria terra.
Ainda com o braço colocado em meu ombro, caminhava lentamente como se guiasse pelos arredores. Minha xícara de café já estava vazia, mas a dele sempre renovada e cada vez mais perfumada. Eu olhava e sentia que ele bebia aos poucos – sem levar a xícara à boca – e também que parecia mais animado a cada gole tomado. E continuava falando perante a natureza e o mundo ao redor:
“Há o homem que semeia o grão. Há o homem que cuida da plantação. Há o homem que faz o recolhimento da safra. Há o homem que vai dar a destinação final. E também há aquele que por último recebe os frutos de todo esse percurso ao derramar sobre a xícara o café e prazerosamente bebê-lo. Ninguém vai com a xícara ao pé de café. Ninguém recolhe o grão de dentro da chaleira. Por que assim acontece? Em verdade, em verdade vos digo: cada um tem a sua parte no mundo, cada ser deve colocar seu quinhão de terra para cimentar o alicerce da vida, pois somente assim poderá dizer que foi útil na grande realização do mundo”.
De repente percebi que a xícara de Deus havia esvaziado de vez. Certamente que logo se encheria sozinha, mas não. Contudo, minha mão que segurava a xícara sentiu um peso maior e quando a levantei percebi que a xícara estava quase transbordando. Espantado com a situação, porém sem querer fazer qualquer pergunta a Deus a esse respeito, levei a xícara à boca. Mas antes de experimentar, ouvi de sua voz já parecendo distante:
“Toma de minha palavra e saciai tua sede. Aquele que bebe de minha palavra terá sempre xícara e pão, pois bebe de mim pelo que foi concedido pelo meu Pai”.


Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com

Lá no meu sertão...


A fé sertaneja. Em Bonsucesso, Poço Redondo, sertão sergipano



A revoada (Poesia)



A revoada


Há uma lição de pássaro
de passarinho em revoada

nos céus passando
uma centena de passarinhos

em pouco tempo
o mesmo bando diminuindo

não dura muito
e quase não passam os passarinhos

nos horizontes
apenas um seguindo o seu caminho

e ninguém sabe
porque tantos e agora um

e ninguém sabe
que aquele pássaro assim sozinho

não se contenta
em ficar preso no ninho

e quer voar
ser passarinho.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta - depois da chuva



*Rangel Alves da Costa


Depois da chuva tudo muda, tudo se transforma. O que antes era molhado, verdoso, vistoso, aos poucos vai tomando outra cor, outra desalentada tonalidade. A fonte começa a secar, o tanque começa a mostrar o seu barro, a planta resseca e o arvoredo vai perdendo sua pujança de folhas. O bicho já não passeia em jardim já não bebe com facilidade, já não repousa à sombra boa. O sol começa a descer em clarão, suas chamas soltam labaredas de fogo, seu braseiro parece a tudo querer incendiar. Um tempo difícil que se aproxima. Tempo de dor, de sofrimento, de agonia. O homem da terra olha desalentado aos horizontes. Nenhuma nuvem de chuva é avistada. Rogar para que chegue o tempo dos trovões, dos relâmpagos, das trovoadas. A sertaneja faz promessas, com mais persistência começa a passar o rosário de contas sobre os seus dedos. Mas todos sabem que tudo no tempo de Deus, tudo em obediência aos ciclos da natureza. Nada resta senão esperar. Como no Livro do Eclesiastes, depois da chuva virá o sol, depois do sol os pingos novamente caindo. Só resta esperar que a página do tempo seja virada e a escrita da sina comece, ainda que por tempo marcado, novamente a florir sobre a terra.


Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com

quarta-feira, 20 de novembro de 2019

PEGA-DE-BOI



*Rangel Alves da Costa


Falar em pega-de-boi é dizer da valentia e galhardia do vaqueiro nordestino em cima de cavalo bom e no encalço apressado do boi adestrado pra não se entregar, pra não deixar ser derrubado pelo rabo.
Mas a história disso tudo vem de longos caminhos. Na região nordestina e sertaneja, sempre foi costumeiro a cria de gado solto. Nos tempos mais antigos, o gado era solto numa vastidão de caatinga sem fim.
Tamanhas eram as propriedades, os chamados latifúndios, que os rebanhos pareciam sumidos nas “soltas” e entre mandacarus e xiquexiques, baraúnas, catingueiras e aroeiras.
Como os donos das grandes propriedades não iam muito além das varandas e arredores de seu casarão ou moradia de mando, a juntada dos bichos passou a ser ofício do vaqueiro.
Ante o fato de que muitas propriedades não serem cercadas e os rebanhos serem criados em conjunto com outros proprietários, escolhia-se um período para fazer as apartações, onde vaqueiros entravam no mato para reunir os rebanhos segundo seus donos.
Eram verdadeiras festas, então chamadas de festas de apartação. Mas como nem todo boi e toda vaca era fácil de ser juntado, vez que arredios e valentes demais, então os homens pegavam seus rastros e seguiam em seus encalços.
Vaqueiros em seus potentes cavalos vencendo os perigosos labirintos da mata para encontrar os rebanhos desgarrados. Um atropelo danado, com cavalo brabo e boi mais brabo ainda.
Contudo, nem sempre se ia atrás de rebanhos, mas apenas de um ou dois animais afastados nos grotões e escondidos catingueirentos. Os bichos saem, pastejam, vão adiante, se escondem.
Bichos tão valentes, atrevidos e difíceis de serem alcançados, que logo surgiram prêmios para aqueles que conseguissem enfim encontrá-los e derrubá-los. Daí o nome de pega-de-boi no mato.
 
Um nome, aliás, que vem de vaca, aquela que cuida da vaca, que tange boiada ou junta o rebanho no pasto ou no curral. Da vaca o vaqueiro, do vaqueiro a vaquejada. De cavalo a cavalgada.
Diferente da pega-de-boi no mato é a corrida de mourão, onde a corrida ao boi é feita em locais fechados, parques de vaquejadas ou nas malhadas das fazendas.
Na corrida de mourão, geralmente há uma um local determinado (ou faixa) demarcando até onde o boi deve ser derrubado.
Tanto na pega-de-boi no mato como na corrida de mourão, diversos prêmios (em dinheiro ou troféus) são distribuídos entre os vaqueiros vencedores.
Não há que duvidar, contudo, que nenhuma modalidade de vaqueirama é mais autêntica e abnegada que aquela exercida pelo vaqueiro de pega-de-boi no mato. E muito mais que o vaqueiro de corrida de mourão.
O vaqueiro da pega-de-boi no mato não pratica seu esporte por boniteza ou simplesmente almejando um prêmio.
O seu troféu maior está no prazer de selar seu cavalo, colocar seu terno de couro, paramentar-se de homem da mata, e adentrar na caatinga atrás do bicho, ou ir ao encalço do valente desde que ele é solto soltando fumaça pelas ventas.
Sabe dos perigos que rondam, sabe das pontas de paus e espinhos certeiros que poderá enfrentar adiante, sabe da valentia do boi, sabe que o sangue e a dor logo lhe poderá fazer companhia, sabe que até pode não retornar da pegada.
Sabe de tudo isso, mas sua valentia e seu destemor não o deixam recuar. Seu objetivo maior é alcançar o bicho, pegar no seu rabo e torcer, até que o chão se abra com a queda do animal.
A poeira cobrindo, as folhas espalhadas, os pés de paus retorcidos, e o vaqueiro domando o valente. Não há prazer maior que isso. E não há vaqueiro mais autêntico e verdadeiro que aquele da pega-de-boi no mato.
E Poço Redondo, sertão sergipano, tem demais. Poço Redondo é celeiro maior desses abnegados, verdadeiramente devotados à vida vaqueira. E que bom que seja assim. A preservação de uma cultura que cheira a couro, a suor e a sertão.


Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com

Lá no meu sertão...


Meu mundo