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A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



quarta-feira, 31 de outubro de 2012

ALCINO, MEU PAI: RETRATO INACABADO - IV (Crônica)


Rangel Alves da Costa*


Durante as três ocasiões em que foi prefeito de Nossa Senhora da Conceição do Poço Redondo (1966/1970 – 1973/1977 – 1982/1988), Alcino Alves Costa jamais mudou sua postura de homem comum, pessoa simples, acessível aos irmãos de sol, sertanejo igual aos demais.
Sempre levando nos pés a inseparável havaiana, costumeiramente de camisa de malha fechada, listrada tantas vezes, deitada ao ombro, nem parecia líder político, prefeito, primeiro mandatário do lugar. Altas horas da noite, quando a lua grande brilhava intensa e o silêncio se alongava pelas plagas matutas, lá ia Alcino com sua radiola, discos debaixo do braço, para a pracinha da matriz. Sem cantar, era o seresteiro da noite, o eterno apaixonado pela plangência da melodia caipira.
De sorriso largo, tez morena, mantinha sua liderança política como se convivesse em meio a uma grande família. Fato curioso que não era apenas prefeito, mas tantas vezes o farmacêutico do lugar, pois mantinha uma verdadeira farmácia com aqueles medicamentos sempre indicados em casos de dor de cabeça, de dente, diarréia e coisa e tal.
E não poderia ser diferente, ao assumir a prefeitura em 66, mesmo sendo territorialmente o maior município de Sergipe, Poço Redondo era totalmente esquecido pelos poderes, abandonado à sua sorte, sobrevivendo da luta do seu povo. Com as estiagens constantes, a pobreza se alastrando, a miséria gritando em todo canto, qualquer auxílio que chegasse para minorar o sofrimento do povo era uma dádiva de Deus.
Nessa época, e mesmo até muito tempo depois, não havia hospital ou maternidade, sequer uma casa de parto. As velhas parteiras tinham de dar conta do recado à luz do candeeiro. Somente depois surgiu um posto da Fundação SESP e um posto médico construído e mantido pelo próprio município. E com atendimento médico somente aos sábados, sob os auspícios do Dr. Jaime, figura humana considerável que marcou época no atendimento à população.
Contudo, as consultas eram poucas e as enfermidades multiplicadas. A extensão do município e o acesso às unidades de saúde mais distantes implicavam num problema grave para a população, e que caberia ao prefeito resolver. Por isso mesmo que Alcino mantinha remédios de utilidade geral sempre ao dispor, de modo que no meio da noite ninguém ficasse sem, por exemplo, um Anador.
Mesmo meninote, lembro bem da constância em que pessoas, nas altas horas da noite ou já madrugada, chegavam batendo à porta: “Chega Alcino, arranje um carro que fulana de tal tá com dor de parir e é coisa que só hospital dá jeito”, “Acuda Alcino, que num sei quem deu uma dor no pé da barriga que tá em tempo de se acabar”, “Socorro, Alcino arrume um carro pelo amor de Deus que sicrana tá com uma dor de correr doida”. E chega, chega, chega, era tudo um aperreio danado.
Tudo longe demais, estradas de chão, sem nem pensar em ambulância naqueles idos, carros caindo os pedaços, então era realmente uma situação muito difícil para o prefeito resolver. E quando alguém falecia a despesa com o caixão artesanal, feito ali mesmo na serraria, era responsabilidade da prefeitura. Tantas vezes do próprio prefeito.
E um costume que se alastrou e sucedeu até o seu último mandato, já no final dos anos 80, merece ser citado, principalmente porque através dele se pode dimensionar a pobreza que se abatia – e continua assim – sobre inúmeras famílias. Eis que todo dia de feira, e mesmo noutros dias, Alcino pagava do próprio bolso dezenas de pequenas cestas de alimentos. Quilo disso e daquilo, mas tudo essencial, cada um garantia seu alimento de poucos dias.
Num tempo de bodegas e mercearias, pequenas vendas de balcão e de um tudo, caderninhos eram especialmente mantidos nas gavetas com o nome de Alcino. As pessoas iam lá, diziam a mando de quem tinham ido para receber o alimento, e depois tudo era anotado com a letra quase sempre ilegível do vendedor de pouca leitura. Só não errava nos números. Assim era na bodega de Missiinha, de Dom, de Zé Preto, na mercearia de Seu João e assim por diante.
Entretanto, não significa que agindo assim Alcino tenha estabelecido aquilo que sociologicamente se chama assistencialismo. E não porque ele não prestava tanta assistência aos seus munícipes objetivando manter currais eleitorais ou fazendo da assistência uma forma de submissão e atrelamento à sua liderança política. Fazia, isto sim, porque conhecedor profundo das carências, das necessidades absolutas do povo, da face horrenda da miséria.
Ora, ele não fazia pouso nem descanso no seu gabinete, não tinha antessala para receber pessoas, não burocratizava as relações com os seus. Alcino vivia nas ruas, nos becos, nas distâncias, em Sítios Novos, em Santa Rosa, em Curralinho, em Bonsucesso, nas Areias, nas Queimadas, na Guia, em todo lugar onde precisasse sentir como a população estava passando e quais as necessidades mais prementes.   
Quando prefeito pela primeira vez, a partir de 66, já era casado, e com três filhos, Nagel, nascido em 62, Rangel em 63 e Ustane em 66. Casou ainda na curva do ano de 1959, com menos de vinte anos, com a moça mais bonita do lugar, Maria do Perpétuo Alves, filha de Teotônio Alves China e Marieta Alves de Sá, família de reconhecido quilate em toda a região sertaneja.
Seu China do Poço, assim conhecido, era um pequeno comerciante, bodegueiro de venda ao lado da moradia, mas cuja influência prosperava através dos amigos que recebia em sua casa para repasto e repouso. Tanto Lampião como Padre Arthur Passos recebiam acolhida do amigo e lambiam os beiços com os pratos sertanejos deliciosos preparados por Dona Marieta.
Acerca da amizade entre aquele que mais tarde viria a ser o sogro de Alcino e o Capitão Lampião, certa feita escrevi:
“Quando estava nos arredores do lugarejo mandava logo um coiteiro avisar ao meu avô materno Teotônio Alves China, o China, um respeitado comerciante do lugarejo, que providenciasse comida que em tal dia e tal hora ele chegaria por lá. Se não confiasse, se não fosse realmente amigo, jamais mandaria avisar ode estava e quando faria uma visita.
E Dona Marieta, coitada, minha avó, colocava as mãos na cabeça e ficava em tempo de endoidar. "Mai o que foi Marieta, só pruque o cumpade Lampião vem aqui você fica assim, e ói qui aqui ele nunca foi um estranho pra nóis não, pelo cuntraro. É nosso amigo e bom amigo. Entonce deixe de avexamento e vá arrumar os cabrito". Então minha avó respondia: "Mai num é isso não China, o poblema é qui o Pade Artur vai tá aqui na merma data qui o Capitão chegar. E cuma vai ser, Deus e o diabo numa casa só?".
E o encontro realmente aconteceu. Os donos da casa com nervos à flor da pele, mas tudo foi resolvido da melhor maneira possível. Nem Lampião quis afrontar o da igreja quando chegou à residência e ficou sabendo de sua presença num dos aposentos, providencialmente tirando uma soneca, nem este se levantou cheio de ira querendo exorcizar o cangaceiro.
Sem demonstrar receios nem olho feio de lado a outro, mais tarde estavam dividindo a mesma mesa e comendo gulosamente a carne de bode, a buchada, a galinha de capoeira e tudo que havia sido preparado com esmero e muito tempero por Dona Marieta. Mesmo na calma tão implorada aos céus, a dona da casa bambeava as pernas finas de tanta preocupação. A hóstia e o sangue olhando olho no olho era difícil demais de acreditar.
E dizem os pesquisadores que nesta oportunidade Lampião perguntou ao padre se ele e seu bando poderiam assistir a missa de agosto em comemoração a Nossa Senhora da Conceição, padroeira do lugar. E recebeu resposta positiva, desde que deixassem as armas do lado de fora. Certamente só foram emparelhadas externamente o armamento pesado, vez que cangaceiro algum iria ficar desarmado por um só instante, ainda que assistindo missa, dentro da igrejinha.
Continua...

  
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com   

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