SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



sexta-feira, 2 de novembro de 2012

ALCINO, MEU PAI: RETRATO INACABADO - VI (Crônica)


Rangel Alves da Costa*


Uma poesia de Drummond, “Confidências do Itabirano”, servirá para demonstrar alguns aspectos que tão bem caracterizaram Alcino Alves Costa. Diz o poeta maior:
Alguns anos vivi em Itabira/ Principalmente nasci em Itabira/ Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro/ Noventa por cento de ferro nas calçadas/ Oitenta por cento de ferro nas almas/ E esse alheamento do que na vida é porosidade e comunicação/ A vontade de amar, que me paralisa o trabalho/ vem de Itabira, de suas noites brancas, sem mulheres e sem horizontes/ E o hábito de sofrer, que tanto me diverte/ é doce herança itabirana/ De Itabira trouxe prendas diversas que ora te ofereço:/ esta pedra de ferro, futuro aço do Brasil/ este São Benedito do velho santeiro Alfredo Duval/ este couro de anta, estendido no sofá da sala de visitas/ este orgulho, esta cabeça baixa.../ Tive ouro, tive gado, tive fazendas/ Hoje sou funcionário público/ Itabira é apenas uma fotografia na parede. Mas como dói!”.
Com Alcino aconteceu do mesmo jeito, só que sempre viveu em Nossa Senhora da Conceição do Poço Redondo. Para ele, aquela terra sertaneja era santuário e refúgio, era o próprio paraíso doado por Deus, era lar e igreja, era casa e leito, era chão e alimento. Não viveria distante de Poço Redondo, não se sentiria nem existente nem existindo se não fosse caminhando pelas ruas, cortando os seus becos, sentando no banco da Praça da Matriz ao entardecer, tomando no corpo a ventania quente de mil sóis noite e dia.
Nos dias que teve de ficar em Aracaju em repouso por causa da enfermidade e mais próximo dos cuidados médicos especializados, só Deus sabe, e ele, como doeu estar distante de seu sertão, de seu lar de chão matuto. E tal distanciamento, como num banzo escravo, talvez tivesse lhe maltratado ainda mais.
Quem era amigo da terra, do bicho do mato, da catingueira, da umburana, do mandacaru e do xiquexique, do velho sertanejo, das histórias de outros tempos, dos tantos amigos que tinha por lá, certamente que amargava um sofrimento terrível pela distância imposta. Quando pedia para que colocassem suas músicas sertanejas, então seus olhos começavam a brilhar de forma diferente. Lágrimas no espelho.
No poema, Drummond diz que tem noventa por cento de ferro nas calçadas; oitenta por cento de ferro nas almas. Alcino, com a mais absoluta certeza, possuía cem por cento de ser, de espírito, de alma, de tudo que houvesse em si, de sua terra sertaneja. No seu pensamento, cujo desejo de demonstração de força impedia falar da tanta saudade que sentia, não povoava outra coisa senão o convívio com aquela realidade tão amada.
E certamente afligia a alma, apertava dolorosamente no coração, estar longe de seus rascunhos, de suas tantas histórias inacabadas, de seus livros sobre o cangaço e o sertão, de seus velhos discos sertanejos, de milhares de músicas escolhidas a dedo e colocadas em CDs, de suas anotações em qualquer folha, de seu quarto de dormir, de sua velha máquina de escrever e do computador que teve de aceitar. E das noites, das ruas, das calçadas amigas reconhecendo o seu irmão que passava.
Contudo, o que mais o poema reflete Alcino talvez seja a última estrofe: “Tive ouro, tive gado, tive fazendas/ Hoje sou funcionário público/ Itabira é apenas uma fotografia na parede. Mas como dói!”. Pois Alcino também teve ouro, teve gado, teve fazendas. Por jamais ter sido materialista, apegado demais aos bens materiais, sua riqueza se dissipou como chegou. E tudo aquilo possuído um dia ficou apenas como um retrato na parede. Porém, sem doer.
E sem machucar porque a riqueza de Alcino era outra, e totalmente diferente do luxo, da posse, da propriedade. Sua grande fortuna – e isto de reconhecimento entre todos – era o conhecimento profundo dos caminhos e veredas do seu sertão. E dessa sabedoria levar ao conhecimento de todos, das novas e futuras gerações, as lutas travadas na terra, os tempos de cangaceiros e coronéis, as raízes históricas ainda não ressequidas.
E também cantar a flor sertaneja, o sertão da lua, da viola e do amor.
Continua...

  
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com   

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