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segunda-feira, 4 de novembro de 2013

BIOGRAFIAS E RETRATOS AVESSOS


Rangel Alves da Costa*


O problema se alastrou agora, mas o conceito de biografia desde muito que vem sendo desvirtuado. Não é difícil saber que o termo biografia corresponde à história de vida de alguém. Os livros unissonamente repetem que biografia é a história escrita da vida de uma determinada pessoa. É, pois, um documento que consta a trajetória de vida de alguém, com dados precisos, incluindo nomes, locais e datas dos principais acontecimentos.
Ao longo dos anos, contudo, a comercialização da imagem de personalidades foi transformando a descrição biográfica num relato de fatos geralmente extravagantes ou que despertem a curiosidade. A intencionalidade maior passou a ser não a descrição o mais fidedigna possível da vida e dos feitos da pessoa biografada, mas quase que exclusivamente acerca daquilo que poucos tinham conhecimento.
Desse modo, não mais interessa a determinado tipo de biógrafo se ater à realidade, a relatar cronologicamente uma vida, a detalhar fatos importantes no percurso da existência, mas tão somente revelar situações e segredos até então desconhecidos pela população. Nesse passo, o que seria uma história de vida se transforma num recorte de situações íntimas e pessoais, até mesmo invadindo a privacidade, num emaranhado de fofocas.
Atualmente, são pouquíssimos os relatos biográficos que não extrapolam a verdade para adentrar no mundo da bisbilhotice e do mexerico, da inverdade e do maldoso boato. Realmente ainda persistem alguns escritos dignos de espelhar com fidelidade o biografado, fazendo constar os fatos mais marcantes de uma vida, ou mesmo um apanhado geral da existência, passo a passo.
Em situações tais, afirma-se que houve compromisso do biógrafo com a verdade, ainda que em muitos ecoem laivos de descrença, raiva ou indignação. Mas eis que ali está descrita a vida de uma pessoa comum, ainda que famosa, e não de uma divindade, um santo ou mártir. E toda biografia séria de pessoa comum há de ser entremeada de realizações e frustrações, de conquistas e derrotas, pois assim é a vida.
Biografias surgem que são desejos pessoais do biografado em ter sua vida descrita para a posteridade. Alguns providenciam para que alguém apenas desenvolva literariamente os seus relatos e os ordene perante suas versões e os recortes. E haveria de ser assim, pois dificilmente alguém vai relatar para as páginas de um livro aquilo que tanto se arrepende de ter feito ou que macule a sua imagem. Daí que toda biografia encomendada geralmente descreve uma infância pobre, uma vida de lutas e conquistas sacrificantes.
Contudo, outras biografias existem - as chamadas não autorizadas - que são mistas de realidade, de possibilidade e de invencionice. Como estas se voltam para famosos e boa parte da vida destes já é do conhecimento comum, então o biógrafo entra no perigoso caminho de descrever fatos ainda não conhecidos e situações que envolvem a intimidade. Contudo, o perigoso mesmo é ir além da possibilidade e descrever como verdade aquilo que jamais existiu. Ou ainda dar ao conhecimento fatos que o biografado deseja ter preservados, ainda que verdadeiros.
Mas ainda há um tipo de biografia que nem deveria ser reconhecida como tal, mas sim como livreto sensacionalista e aproveitador, voltada que é exclusivamente para descrever ou inventar fatos relacionados à intimidade de famosos. E não apenas esmiuçam as intimidades como criam situações inverídicas envolvendo sexo, drogas, fracassos. Estas não possuem compromisso nenhum nem com o biografado nem com a verdade, mas apenas com a lucratividade.
Estas duas últimas espécies de biografias são as que mais fazem parte dos atuais e acalorados debates. Meu ponto de vista é a mesma concepção de muitos. Não comungo com a ideia segundo a qual os podres não devam ser conhecidos, as intimidades não possam ser reveladas e cada um pode dispor de sua imagem ao bel-prazer. E não porque a própria fama já retira essa privacidade que muitos desejam manter contra tudo e todos.
E aos descontentes repito que há os caminhos da lei. Ora, se a biografia não passa de um lamaçal ou de uma junção de mentiras e aleivosias, que se busque o judiciário para ter a honra respeitada. Mas somente depois que for comprovada a desonra, e não através de censura prévia como grande parte deseja fazer.
Que os famosos também desçam dos pedestais e lancem os olhos nas letras da lei. Logicamente que o Código Civil, no art. 20, abre brechas para que as personalidades procurem censurar previamente as biografias. Contudo, a permissão ou autorização está contida na Constituição Federal, ao afirmar que é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato; é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença; é assegurado a todos o acesso à informação (CF, art. 5º IV, IX e XIV).
O biógrafo, pois, não pode ser previamente impedido de publicar sua obra pelo simples fato de que poderá causar dano a alguém. A não ser que o conteúdo ou parte deste já seja do conhecimento. Censurar previamente é tentar que o judiciário antecipe o julgamento sobre suposta violação da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem. Ora, o dano deve ser provado e não presumido.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

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