SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



sábado, 9 de novembro de 2013

PÁSSARO


Rangel Alves da Costa*


Mais que espelho e até do meu íntimo, conheço e sou amigo de um pássaro que reflete todo o meu estado de espírito. Espelha minha tristeza, sente minha aflição, demonstra toda minha alegria e contentamento.
Abro a janela contente, sorrio de braços abertos para a manhã ensolarada, cumprimento a natureza ao redor, e logo o pássaro voa fazendo festa ao meu redor. Procura expressar o que estou sentindo.
Saio pelos campos, silenciosamente converso com a pedra, reflito perante a natureza ao redor, não me mostro nem alegre nem triste, apenas alguém vivendo o seu instante. E eis que o pássaro é avistado no galho da árvore. Apenas isso.
Procuro refúgio no entardecer, subo à montanha, converso com meu Deus, do alto aprecio agradecidamente toda criação ao redor, e depois desço com a alma e o espírito renascidos de fé e esperança. E o pássaro parece orar comigo.
Peço licença à pedra amiga, sento na sua cadeira e me ponho silenciosamente à leitura de um livro. Talvez romance, talvez poesia. E me envolvo tanto com a leitura, me entrego tanto às palavras, que nem percebo o pássaro no meu ombro. Certamente extasiado.
Poeta que imagino ser, de vez em quando coloco o caderno no umbral da janela e rabisco luas e sóis em palavras, paixões e amores em versos, desejos e melancolias em estrofes. E o pássaro pousa sobre a folha e faz do seu bico a pena reescrevendo minhas quimeras.
Assim é o meu pássaro, sentindo o que sinto, expressando como estou, refletindo meu momento, meu ânimo, meu estado de espírito. Por isso creio que o pássaro chora, sofre, lamenta, fica angustiado, padece na solidão.
Certa feita esqueci um retrato em cima da cama, e também uma carta já toda amassada de tanto ser lida. Eis que encontro o pássaro mirando a fotografia e depois passando a ponta da asa por cima das letras molhadas de lágrimas. E em seguida voa sem seu canto de despedida.
Não sei bem o que dizer sobre essa situação. Acho bom e ruim ao mesmo tempo. Prezo demais essa estranha amizade, mas jamais gostaria que o pássaro sentisse tudo o que sinto. Sou mais triste que alegre, sou mais solidão que palavra, sou mais saudade que presença. Quanta dor ser passarinho assim.
Conhecendo sua reação, sempre tentei fingir ou ocultar meus dilemas, meus sofrimentos, minhas dores. Choro internamente, sofro intimamente, tudo faço para não deixar na feição as marcas aflitivas do momento. Mas um dia o pássaro me encontrou com olhos lacrimejantes.
Surgiu de repente, chegou num voo silencioso, e planou diante de mim à moda dos colibris. Olhou no meu olho, se aproximou, tocou o bico na lágrima e depois alçou voo quase sem bater asas.
Dois dias se passaram sem retornar à minha janela, sem voar ao meu lado, sem pousar no meu ombro. Tudo fiz para encontrá-lo e não consegui. Mas tinha certeza que ele não estava distante, pois sentia o pulsar de suas asas, a sua presença, e até o seu canto suave.
Procurava-o com avidez, porém temendo reencontrá-lo. Sendo espelho de meus sentimentos, certamente estaria numa deplorável situação, vez que a saudade se fizera tão forte e persistente em mim que de repente me vi uivando o grito solitário dos lobos aflitos.
Até que no terceiro dia ele voltou. Depois de uma noite angustiante, levantei e abri a janela disposto a não mais sofrer. E novamente sorri para a manhã, abracei a vida, respirei o ar puro do renascimento.
Então ouvi o seu canto dentro de mim. E compreendi que o meu pássaro era o meu íntimo querendo voar.

Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

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