SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



sábado, 31 de maio de 2014

DIAS DE CIMENTO E PEDRA


Rangel Alves da Costa*


Angustia-me dizer, mas os dias que tenho vivido são de cimento e pedra. E também de asfalto, de ferro, de muros perante o olhar e paredes encobrindo as paisagens e os horizontes. Verdadeiramente não é mundo. E sim um misto de negrume e acinzentado que tenta petrificar a alma.
Nasci e me fiz menino noutro mundo, e bem diferente desse que tenho agora. Sim, era um mundo no barro batido, na poeira pelas ruas, nas pedras e espinhos pelos caminhos, mas tudo tão cativante como o próprio berço. Eis que leito de nascimento e estrada que nunca se fez estranha ao meu olhar.
Sim, era um mundo empobrecido, numa terra distante, árida, com estiagens tão prolongadas que assustava o sol. Mas de lua imensa, de noites românticas, de vozes passarinheiras, de sublimes paisagens, mesmo quando acinzentadas pelas securas.
Um mundo de cheiro de café torrado se espalhando pelas tardes, de cuscuz de milho ralado, de queijo de quintal e preparado por mãos cuidadosas, e uma infinidade de iguarias apetitosas. O mungunzá, o arroz doce, o bolo de milho e de macaxeira, a canjica e a coalhada.
Um mundo de quintais e descampados, de violas caipiras e de sanfonas. Ainda ouço o boi berrando, vejo o velho vaqueiro ajeitando a sela de seu alazão e pegando a estrada com aboio na garganta. E o carro de boi gemendo sua sina, o jegue esquipando pelas veredas, a lavadeira passando com sua trouxa na cabeça.
Manhãs de vizinhas varrendo as calçadas, sertanejos se apressando para suas lides, meninos correndo para armar arapucas. Tardes de cadeiras nas calçadas, senhoras dedilhando bilros com maestria, velhos amigos proseando debaixo do pé de pau. E o vento quente de repente amainando e trazendo aragem e folhagem.
E o menino correndo nu pelas ruas em dias de chuvarada. A molecada se jogando das pedras do riachinho, uma verdadeira festa no sertão molhado. Mas tudo parece ter mudado quando os pés descalços tiveram de calçar chinelo de couro. E o pior foi ter suportar os espinhos na sola do sapato nos caminhos da cidade grande.
Não só espinhos na sola dos sapatos como o asfalto e as pedras queimando tudo. Por mais que os caminhos da cidade grande pareçam lisos e fáceis de andar, não há pé de sertanejo que suporte tanta estranheza. O espinho do sertão conhece o pé, o pé do sertanejo vence as pontas afiadas sem nada sentir, mas basta colocar o pé no asfalto que tudo parece insuportável.
Mas tudo pela cruel simbologia que o asfalto, a pedra e o cimento da cidade grande representam. Eis que tudo frio, feio, violento, ameaçador. Eis que tudo desconhecido, tudo brutal e arrogante, nada como a simplicidade e a singeleza dos caminhos sertanejos. Há um contraste absurdo nas pessoas, nos modos de tratamento, nos gestos arrogantes e nos olhares intimidadores.
Por aqui as pessoas apenas se cruzam, se batem e se estranham, enquanto lá sempre havia um bom dia, um boa tarde, um como vai, uma constante aproximação com o amigo. Por aqui as portas e janelas são fechadas assim que chega o anoitecer, enquanto por lá era o momento das calçadas, das andanças de lado a outro, dos encontros pelas ruazinhas escurecidas.
Não tenho culpa de estar aqui em meio ao cimentado e outras durezas. Também não tive culpa quando me mostraram a estrada e disseram para seguir adiante, pois seria a escolha entre a enxada e a caneta. Mas tenho culpa por viver tão distante de tudo aquilo que tanto amo e que tanta falta me faz.
O que me anima os dias e os tornam menos dolorosos é a esperança de voltar para sempre. Não para viver na cidade, pois também já tomada de todos os vícios e misérias da cidade grande. Mas no meio do mato, bem perto do bicho, da lua e do sol. E com manhãs tão cativantes e entardeceres tão sublimes que imagine estar no paraíso. E estarei.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com 

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