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segunda-feira, 19 de maio de 2014

SORÓ, O JAGUNÇO


Rangel Alves da Costa*


Jagunço não, ex-jagunço, havia esclarecido Soró na última vez que abriu a boca para conversar com alguém. Quem ouviu tal consideração também não pôde escutar mais nada, eis que caiu estatelado no chão, cravado de balas, sangrando de correnteza.
Havia ido matar Socó, bateu à sua porta, foi recebido do lado de fora, começou a entabular um proseado falsamente amigueiro, mas não conhecia as artimanhas do perigoso assassino. Assim que fez a pergunta para confirmar se estava diante do jagunço Soró, este respondeu já atirando: Jagunço não, ex-jagunço.
Ex-jagunço porque já havia se comprometido a não matar mais ninguém de emboscada, tocaia ou qualquer coisa parecida. Mas percebeu que aquele cabra trazia sua morte sob encomenda, por isso matou. E depois disso se manteve disposto a não puxar mais o gatilho nem a peso de ouro. Seu desejo agora era outro, sua vida também, só não sabia se iria conseguir.
Depois de encharcar as mãos de sangue para jogar o cabra nos escondidos por trás da serra, voltou decidido a não lavar as mãos quanto tempo fosse necessário para se impregnar do cheiro de morte e jamais esquecer quantos já tinha derrubado na frieza covarde, às escondidas, por ninharia. Ninharia sim, pois matar para receber vintém do coronel não dava nem pra manter família. Ainda bem que não tinha nem mulher nem filho.
Morava sozinho, nos escondidos do mundo, mas se fazia presente assim que o seu patrão mandasse notícia que estava precisando de um servicinho. Montava no cavalo, se armava até os dentes e riscava na malhada do casarão. De lá já saía sabendo quem deveria emboscar. Quase sempre alguém que estivesse servindo como empecilho para as empreitadas sempre maldosas daquele seu patrão, afamado senhor de terra e bicho.
Mas já estava cansado de ser usado para tirar a vida de gente que nem conhecia, talvez até pessoas de bem, inocentes. Não havia conseguido nada metendo bala na testa de um e de outro. Pobre havia nascido e pobre continuava. E agora carregando nas costas a culpa por tantos crimes. Não pensava nem em pecado, pois sabia que já prometido ao fogo mais ardente que existisse. O problema maior era cair nas mãos da justiça e saber que seu patrão, mesmo mandando em tudo, nada faria para livrá-lo da condenação.
Precisava dar um basta nisso tudo. Uma semana, um mês ou ano sem puxar gatilho já estava de bom tamanho. Se até lá não fosse acusado por tantas mortes, então pensaria até em morar na cidade e se passar como pessoa comum, mesmo sabendo que sombras e pesadelos terríveis o acompanhariam pelo resto da vida fosse aonde fosse.
O coronel mandou avisá-lo que precisava acertar contas com outro coronel, agora tornado inimigo, e resolveu não ir. Já sabia que lhe caberia tocaiar o poderoso até deixá-lo estrebuchado no chão, sufocado até a morte na poça de seu próprio sangue. Não foi e sabia que pagaria pela desfeita. Conhecia bem a sanha assassina do patrão.
Tinha certeza que enviaria alguém para matá-lo e aquele cabra chegado com boa conversa, depois perguntando se estava diante do jagunço, não era outro senão o mensageiro da morte, outro matador pago para o serviço. Foi por isso que não pensou duas vezes. Matou antes que fosse acertado e morto. Mas não era pra ser assim.
Não era pra ser assim pela promessa feita. Havia se comprometido a não ser mais jagunço, a não matar mais ninguém nessa cruel condição. Por isso mesmo que precisava sentir nas mãos aquele cheiro putrefato de morte, sentir ainda aquele sangue repugnante tão perto de si, sufocando suas entranhas.
Ora, sangue e morte tinham feito parte de toda sua vida de vilezas e crueldades. Mas suportaria aquela presença abominável? O pedaço de pão vinha acompanhado da morte, o punhado de farinha seca na presença do sangue, tudo o que tocava vinha acompanhado de seu ofício assassino.
Sentou num tronco, levantou as mãos diante dos olhos, depois passou os dedos podres pelo nariz. Não sabia que a morte fedia tanto, mas não lavaria as mãos. Não enquanto guardasse na memória tantas atrocidades cometidas. Mas suportaria tanto martírio, ter nas mãos as lembranças dos crimes covardemente cometidos?
E nunca mais lavou as mãos nem tomou banho. E quem o encontrasse pelas estradas, completamente louco, pensaria apenas ser mais um insano imundo, maltrapilho, caminhando sem destino. E era. Só que este implorava por água benta para lavar as mãos.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com 

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