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segunda-feira, 11 de agosto de 2014

CANIBALISMO AMOROSO (A FOME DE TUDO)


Rangel Alves da Costa*


Apenas imagina que ama, mas não sente amor. O que sente é necessidade de presença, de posse, sede e fome de possuir. O amor presumido não tem sentido se não for confirmado pelo exaurimento prazeroso do outro. E para tal tem de abocanhar, destrinchar, experimentar a crueza de cada pedaço de corpo, de cada entranha.
Paixão extravasada, ensandecida, impulsiva. Será preciso mortificar para sentir desejo, será preciso violentar para se assegurar da posse. E, mais que tudo, será preciso domar as forças do outro para que tudo se transforme em absoluta e incontida servidão.
Extrapola na avidez, no gestual de voracidade, no desejo ilimitado de abocanhar a pele, o coração, o sexo. Gestos abruptos, vorazes, repetidos e cada vez mais fortes. Não importa a dor, o sofrimento, o grito, a lágrima, a morte. Importa somente o prazer de ter para devorar, para saciar a fome animalesca.
Os olhos devem ser gostosos de ser devorados. Lamber as mãos e braços e depois mordê-los com voracidade, querendo as superfícies, entranhas e ossos. Puxar os cabelos até arrancá-los, beijá-los, esfregá-los sobre si, e depois soltar ao vento como êxtase orgásmico.
E tudo no corpo desperta desejo, querer, sanha, paixão, lascívia incontida, afloramentos dos instintos sexuais mais selvagens. Não apenas carnais como físicos e mentais. Impossível apenas a proximidade, o toque, a retribuição do desejo, a relação amorosa. Quer beber o corpo, quer comer o corpo, que experimentar da pele, do sexo, do sangue, de tudo.
Talvez imagine seja paixão, ainda que doentia, mas nada sente que seja passional. Talvez uma paixão animalesca desconhecida, excessiva, brutalmente incontrolável. O que sente é abrasamento, volúpia, ensandecimento, perda absoluta de controle. Porém sabe o que quer, que é apenas subtrair, através da posse do corpo e do sexo, toda a força vital do outro.
Não quer beijar, quer ir além do beijo para morder, para sentir a vividez sangrenta da boca. Não quer abraçar, que ir além de tomar em seus braços para usurpar o corpo, apossar-se das forças, domar e subjugar. Não quer tocar, não quer acariciar, nada disso quer, mas apalpar, beliscar, morder, lamber, sugar, ferir. Quer rasgar, quer entrar e sair quando quiser.
Acaso fosse um prato de comida ou uma porção de saboroso alimento, não se comportaria com qualquer etiqueta ou comedimento. Também não experimentaria primeiro sabor nem comeria aos poucos, em bocados. Tomaria tudo com as mãos, procuraria abocanhar tudo de uma vez, agiria como se quisesse devorar tudo num só instante. Rasgando, estraçalhando, abocanhando, lambendo, cuspindo, querendo ainda mais.
Não quer carinho nem carícia, afago ou palavras, sequer o murmúrio ou o silêncio. Ora, está insensível, anestesiado pela obsessão, pela voragem que extasia corpo, mente e alma, e exige a posse frenética, a propriedade ilimitada, o domínio descomedido. E quer mais, infinitamente mais.
Também não enxerga o corpo adiante, a beleza da nudez ou as pétalas perfumadas sobre a pele. Também não ouve, não reage, não é capaz de qualquer ação humanamente compressível. Há sim, há um brilho estranho no olhar, um descompasso nos gestos e atitudes, uma feição sádica e impetuosa.
Não, não quer o sexo, nada que seja apenas o ato sexual. Os sexos se tocando, se preenchendo, se adentrando, não possui nenhuma importância. Nada significa a penetração, os impulsos, o prazer, o êxtase, o orgasmo. Quer apenas o corpo usado, extravasado, insaciavelmente corrompido. Avista-se navalha cortante, brasa em chamas, punhal afiado.
Quer mais, muito mais. Ainda tem fome, tem sede, está sedento, está faminto. O ser inteiro demonstra estar assim, carente de tudo. Mas não é fome de comer, mas de se lambuzar; não é sede de beber, mas de naufragar; não é carência que possa ser saciada senão com o absoluto desejo de tudo ter, de modo voraz, promíscuo e insaciável.
Não há como comprovar qualquer patologia, qualquer loucura, grave afetação mental. Ora, o outro não reclama, não procura fugir, talvez goste de ser mortificado no festim antropofágico canibalesco. Quer mais. Quem é o louco, onde está a loucura?
Quando a mente se deixa conduzir pelos instintos sexuais, principalmente os desviantes, não há mais que se falar em sentimento, amor ou paixão. A vida se transforma num ritual e a busca do sexo em antropofagia. Com carne viva sobre a fogueira, mas sem dor. A dor é o prazer no canibalismo amoroso.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

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