SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



domingo, 3 de julho de 2011

TEMPESTADE - 55 (Conto)

TEMPESTADE – 55

                          Rangel Alves da Costa*


Depois que fizeram com que o enfermo seminarista tomasse mais de meio copo de cachaça das mais valentes, sem jamais ter colocado uma gota sequer de bebida alcoólica na boca, as mulheres o estenderam na posição de antes. Qualquer posição sempre dolorosa.
Em seguida dividiram entre si o restante do líquido da garrafa, brindando à saúde tão almejada no amigo. Viravam o copo passando a língua pelos beiços, saboreando com prazer cada gotinha, como se fossem velhas cachaceiras, contumazes farristas de pé de balcão, de garrafa escondida no canto da cozinha. Só faltava ali a batucada e o remelexo. 
Passados os instantes da queimação com a bebida entrando na boca e descendo até o organismo, com os espasmos característicos e a repugnância pelo amargor fétido da aguardente, o corpo do jovem se mostrava ainda amolecido, suando frio, estremecendo de vez em quando.
Mas não durou muito e começou a mostrar outras reações, agora já em consequencia da absorção da bebida. Estava muito escurecido no ambiente, apenas com as chamas das velas dando ares às feições, mas se estivesse mais claro todas veriam que o sangue parecia ter retornado à pele, a pulsação havia aumentado, a face estava num tom mais avermelhado, o corpo suava diferente, mais quente e com um suor cheirando à bebida, ao álcool forte da aguardente.
O suor, parecendo que havia aberto as comportas da pele, surgia tão abundante e exalava um cheiro tão forte de álcool que as mulheres passaram a temer a proximidade da chama da vela. Quanto mais passavam panos pelo rosto e pelo peito do rapaz mais ele se abria em suor, com a pele queimando, avermelhando ainda mais, parecendo que o corpo em brasa estava derretendo.
Não demorou muito e o seminarista começou a balançar a cabeça e a dizer palavras desconexas: “Caderno caído. Cuidado caderno caiu, ninguém pode achar. Caderno precisa ser destruído. caderno caído, mulher caída também, desmaiada. Leu caderno e pode morrer. Desmaiada, caderno caído...”.
“Mas o que o pobrezinho fala tanto, meu Deus do céu? Se a gente pudesse adivinhar o que ele diz tanto...”. Filó falava quando foi entrecortada por Socorro: “Mas só pode ser do bendito caderninho que foi achado debaixo da cama e que foi levado daqui, de cima do culote de Minervina e por quem a gente imagina bem quem possa ter sido...”.
Minervina achou interessante fazer uma observação: “Vocês não perceberam, mas ele não tá dizendo coisa com coisa não, conversa travariada não, mas que a gente pode concluir bem o que seja, ao menos chegar perto. Pra mim ele tá dizendo que tem uma mulher caída por cima do caderno...”.
E quase num grito Filó acrescentou: “Se tem coisa de mulher então é sobre a danada da Antonieta que ele tá falando. E se ele tá falando em caderno então é mais ainda sobre ela, quem bem pode ter sido quem pegou o caderno escondido. O problema é saber esse negócio de mulher caída...”.
“Não só caída como desmaiada. Então aconteceu alguma coisa com Antonieta que ela caiu com o caderno. E caiu e está desmaiada. Mas só vamos tirar essa história a limpo quando a gente encontrar a danada, que deve tá aprontando alguma lá na frente. Vocês acham que devemos abandonar o pobrezinho aqui desse jeito e sair procurando agora mesmo aquela desarvorada?”, perguntou Minervina.
Rosinha então opiniou: “Mas não precisa todo mundo sair daqui de uma vez só não. Três vão caçar adonde a outra tá escondida ou se meteu e duas fica aqui cuidando dele. E olhem pra ele, o coitadinho, agora parecendo biqueira de alambique, agora escorrendo pela pele muito mais do que a cangibrina que teve de entornar. E pelo jeito a qualquer momento ele vai abrir os olhinhos. Então eu acho melhor que eu e Custódia fiquemo aqui enquanto vocês vão atrás daquela imprestável”.
Acharam excelente a proposta feita por Rosinha. Então, duas ficariam cuidando do adoentado e outras três seguiriam em busca do tesouro perdido, mas não que houvesse alguma joia que pudesse ser encontrada, mas pela mulher perdida, verdadeiro poço e tesouro de falsidade, que era Antonieta.
Antes de saírem, contudo, ouviram mais uma vez a voz fraquinha do seminarista, num murmurejar: “Rasgue o caderno, destrua o caderno, jogue tudo fora. A mesma dor da outra será a dor de todas, de todos e um sofrimento ainda mais espalhado. Encontre o caderno e destrua, no fogo, no fogo mais, quente, que é para o pó das cinzas ser levado pelas águas e as águas deixarem de cair assim...”.
O espanto foi geral. Se instantes atrás ele dizia coisa com coisa, com palavras que mal davam para serem ouvidas e muito menos entendidas, agora havia se expressado como alguém em plena consciência, porém afirmando uma coisa misteriosa demais para ser entendida.
O pior é que Socorro percebeu que ele falou tudo isso sem abrir a boca um instante sequer, tudo acontecendo como se as palavras saíssem da boca estando ela fechada. Se as outras perceberam esse fato ninguém comentou nada, mas a verdade é que depois disso todas ficaram se olhando entre si, assustadas, medrosas, com medo de até sair dali.
Por fim, as três se encaminharam para a porta da sacristia, que continuava fechada por dentro, como forma de não permitir o retorno de Antonieta. Pé ante pé, numa escuridão de pouco enxergar adiante, já um tanto tomadas pela cachaça que experimentaram com valentia, mas que agora já as tornava mais vulneráveis a tudo que encontrassem pela frente, às pontas de bancos, ao que estivesse no meio do caminho.
E foi por isso que Filó escorregou e caiu bem perto, quase em cima, onde Antonieta continuava desacordada.

                                                       continua...





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sábado, 2 de julho de 2011

QUANDO TUDO DESANDOU, QUEM MORREU SE AVIVOU... (Crônica)

QUANDO TUDO DESANDOU, QUEM MORREU SE AVIVOU...

                          Rangel Alves da Costa*


Não sei se é mais maluco quem contou ou aquele que acreditou, mas a verdade é que se trata de uma história sem pé nem cabeça, dita acontecida de verdade, segundo os mentirosos e de pouca confiança confirmam.
E tudo começou quando alguém levantou e foi abrir a janela que já estava aberta, olhou para o lado que o sol nasce, porém nada encontrou por lá, já que nesse dia o brilhoso nasceu noutro lugar, precisamente no oeste, lado contrário de onde deveria surgir na manhã.
Desconfiado, o cabra ligou o rádio e o locutor logo lhe deu boa noite. E disse que já eram tantas horas do crepúsculo. Olhou o relógio e viu que o radialista estava certo. Mas se ele tinha razão, então o mundo todo estava errado, pois mesmo saindo num lugar trocado o sol brilhava lá fora.
Só pra confirmar, foi até a janela novamente e viu a maior claridade da vida, só que lá por cima só tinha nuvem negra e logo uma verdadeira tempestade começou a cair. Quanto mais brilhava o sol mais a chuva caía forte. Olhou mais adiante e viu pessoas caminhando pelas ruas debaixo da chuva, sem guarda-chuva nem nada, mas sem se molhar de jeito nenhum.
Como tinha que ir trabalhar, resolveu sair assim mesmo. Nem se deu conta do fato, mas a verdade é que vestiu a calça com a frente pra trás, a camisa pelo avesso e os sapatos em pés trocados. Assim que abriu o portão foi saudado por uma vizinha: “Vai como, bem tudo? Bom um que tenha dia...”.
Mas que modo diferente de falar com os outros, pensou ele. Seguiu em direção à padaria, mas no local onde ela deveria estar avistou uma farmácia. Teve que voltar para a farmácia para comer o pão com café. Do mesmo modo, avistou a banca de jornal onde havia um banco de jardim.
O padeiro, velho conhecido, era o mesmo, só que outro, pois parecia que nunca o tinha visto. Tratou-o com desdém e perguntou: “Leite torrado com pão café?”. Pediu que repetisse e ele falou: “Quiser não leite torrado com pão café, bolo manteiga, suco copo pão laranja...”. Achou melhor começar o regime naquele instante.
Lá fora, não acreditou no que viu. Um cortejo carregando um caixão vindo do cemitério e pessoas com traje espalhafatoso, parecendo fantasia de carnaval, conversando e sorrindo na maior alegria. Quando passaram em sua frente percebeu o que ia ser enterrado fumando um charuto.
Seguiu adiante e viu quando uma velhinha perto dos cem anos corria atrás de uma bola e depois a chutava com força numa vidraça, que se espatifou. Em seguida saiu da casa uma criancinha com um cabo de vassoura nas mãos e se danou a correr atrás da velhinha dizendo que ia dizer à sua mãe o que ela andava fazendo ao invés de estar estudando.
Não estava maluco, só acreditava porque estava vendo, mas ainda assim ficava abobalhada com tanta coisa sem pé nem cabeça, parecendo que o mundo havia desandado de vez. Pensando nessas e quase nem percebe quando um carro de luxo freou bem a seu lado e dele desceu um homem todo elegante, vestido de terno importado e brilhoso de riquezas dos pés à cabeça, perguntando se queria engraxar os sapatos. Fazia mais barato porque estava com fome, disse o homem choroso.
Só faltava essa, pensou. Mais adiante um jornaleiro gritava: “Gigia marcou gol contra e o Brasil sagrou-se campeão ao vencer o Uruguai por 2 X 1 ontem no Maracanã”. “E leia também: Elvis não morreu, Bin Laden também não!”. “Extra, extra: Disco Voador foi visto em Brasília abduzindo políticos corruptos. O Congresso nacional ficou completamente vazio!”.
Interessou-se pelas notícias e resolveu chamar o ceguinho que lia as manchetes para comprar o jornal. E realmente não pôde acreditar no que passou a ler, jurando a si mesmo que nada daquilo podia ser verdade, pois o diário dizia, por exemplo, que um dos primeiros sintomas da loucura é não querer acreditar que tudo nesse mundo pode acontecer.



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TEMPESTADE - 54 (Conto)

TEMPESTADE – 54

                          Rangel Alves da Costa*


Fabiana até que procurou desmotivar o marido na sua intenção de enfrentar aquela terrível situação e ir até a comunidade do riachinho. Ela sabia que seria loucura tomar uma atitude assim, se arriscar em meio à tempestade e ainda por cima correr o risco de ficar preso no carro atolado e tomado de água.
Talvez o carro nem saísse da garagem, alegou a mulher. E acaso saísse não viraria duas esquinas e apagaria o fogo, o motor deixaria de funcionar. E como retirar o veículo de lá se não havia ninguém pra ajudar, como evitar que o carro ficasse todo inundado e sem ele poder sair do seu interior, vez que certamente tudo estaria num nível só de água? Argumentou e se aprofundou em argumentar muito mais.
Porém não havia jeito dele desistir. Tentando um último recurso, ela falou que não sabia onde estava a chave do veículo e que naquela escuridão seria impossível de encontrá-la. Mas Antonio se dirigiu até o bolso dela e pegou as chaves, perguntando somente se ela o acompanharia ou não.
Fabiana nunca havia confrontado o esposo, mas dessa vez se viu forçada a dizer que por mais que sentisse demais o que estava acontecendo com aquele povo e o quanto gostaria de estar lá para ajudar no que fosse possível, dessa vez não seguiria com ele não, pois sabia da loucura que seria arredar o pé dali. E chorou ao dizer que se Antonio fizesse realmente o que estava pensando era o mesmo que estar dando um adeus de despedida.
Verdade é que ela só ouviu o carro saindo da garagem e se deitou em prantos no sofá. Lá fora a escuridão plena, total, emoldurada pela ira do tempo, como se todos os moradores daquela região estivessem sendo colocados à prova, submetendo-se a dor e ao sofrimento por algum mal muito grave cometido. Ninguém era santo ali, nem tão inocente assim, com todo mundo adulto tendo a sua parcela de erros e pecados. Mas por que pagar preço tão alto?
O maluquinho já tinha explicado porque e dito que aquilo tudo era pra pagar o que faziam com ele, judiando-o, maltratando-o, sem que o mesmo jamais houvesse atirado uma pedra sequer numa pessoa ou ao menos falado que sicrano ou beltrano era feio ou gordo, barrigudo ou careca. Mas ninguém acreditava no que ele dizia. Doidinho como era, ninguém ouvia como verdade quase nada que vinha de sua boca.
Pela força e consequencia da tragédia, num dilúvio que se avolumava cada vez mais e a cada instante parecia redobrar sua força, sua sede, sua sanha, tornava-se até impensável que o maluquinho tivesse algo a ver com o que estava ocorrendo. Mas como alguém já havia dito que entre o céu e a terra há mais mistérios do que imagina a vã filosofia, então todo comedimento seria pouco para atinar sobre alguma verdade acerca do surgimento, manifestação e consequencias incalculáveis da faminta tempestade.
No caminho de casa, retornando para providenciar urgentemente a outra porção do remédio medicinal, e antes de sair da praça da igreja, Teté avistou uns faróis acesos, porém quis acreditar que as luzes cortantes lá do alto estavam refletindo na água que escorria volumosamente por baixo. Jamais iria acreditar que ali seriam as luzes dos faróis do carro de Antonio. Era impossível que alguém tentasse dirigir naquelas condições. Até um maluquinho sabia disso.
Ao passar pela igreja não quis entrar para se informar como estava passando o seminarista com medo de se atrasar mais ainda e não dá tempo de salvar nem um nem outro. Não atinava para o caso, mas já tinha feito a besteira de complicar tudo na divisão do remédio e na desnecessidade de retornar para arranjar mais, e agora parecia estar com a maior pressa do mundo.
Dentro da igreja, na parte destinada às celebrações, a vela ainda acesa iluminava opacamente por cima e deixava praticamente na escuridão o que estava mais embaixo. E era nesse local ao fundo, caída por cima do elevado do altar, que Antonieta continuava esparramada, ainda com os olhos arregalados. O caderninho com os escritos desconhecidos, misteriosos, apavorantes, com o poder de fazer desmaiar, parecia uma caixa de Pandora aberta bem ao lado.
As outras mulheres sabiam que ela estava em outro local da igreja, pois elas mesmas a enxotaram de lá, do quartinho da sacristia. Se não fossem os cuidados constantes com o doente já teriam percorrido cada canto em busca do caderninho que havia sido roubado da posse de Minervina, e todo mundo já sabia que só podia ter sido ela.
Ademais, enquanto Antonieta estava lá estendida, as amigas se preparavam para fazer com que Tristão virasse goela adentro quase meio copo de cachaça. Já que havia tido a ideia, então Minervina segurou o copo na mão, despejou cerca de duas doses, cheirou na beirada do copo, fez uma cara terrível, depois derramou um tiquinho no chão em louvor do santo e mandou que as outras preparassem o doente para receber forçosamente a bebida.
Ergueram um pouco o doente, levantaram um pouco a cabeça, abriram a boca cuidadosamente e em seguida a servidora se encaminhou com a golada certeira, com a cachaça retinta, pura, de cheiro forte e valente, e foi derramando na boca.
O coitado de Tristão despertou das profundezas da enfermidade, repugnou, fez jeito de quem iria botar pra fora, mas não teve como, engoliu tudo assim mesmo. Que percurso orgânico terrível teria sido, mas a cachaça desceu completamente. Agora era só esperar fazer o efeito.

                                                         continua...





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Fumaça (Poesia)

Fumaça



Não reacendi
a esperança
não amo
fazendo festança
para o amor
ser chama
que não inflama
não proclama
ardor e flama
na paixão
que reclama
muito mais
do que a fumaça
que surge e passa
e tudo amordaça
tornando vertigem
fuligem
pó e poeira
cinzas
cigarro apagado
no copo virado
amor transbordado
amor acabado.


Rangel Alves da Costa

sexta-feira, 1 de julho de 2011

CRIANÇA CAÇANDO VENTO (Crônica)

CRIANÇA CAÇANDO VENTO

                                 Rangel Alves da Costa*


Já tinha visto de tudo, presenciado quase tudo, coisa de admirar e também de espantar. Já tinha visto criança fazendo de pedaço de pau um cavalo alazão, conversar com boneca de pano, roubar a vassoura da bruxa e viajar pelas nuvens, dar peteleco no dragão malvado do reino encantado.
Tinha visto de tudo, mas criança caçando vento nunca tinha visto não. E quando soube dessa história foi em deus-nos-acuda, dizendo que o mundo endoidou, que tudo maluqueceu, que só faltava essa: menino deixar de brincar pra se danar a caçar vento. Só sendo coisa de menino...
Mas era verdade, havia um menino que de repente cismou de caçar vento e depois da escola e da fazer a lição de casa não queria saber de outra coisa senão se danar pelo mundo caçando vento. Mas seu aboio era o silêncio, sua arma a paciência, seu motivo... Só Deus sabe!
Era caçador exigente, sabendo o que realmente queria, pois nem chegava perto de ventania, pois dizia que era muita danada e arrelienta pra ficar dentro do seu alforje, nem queria saber de brisa, vez que, segundo ele, era leve e sonolenta demais e não servia para o que pretendia fazer com a coleta do vento.
Chegava em casa perto do meio dia, almoçava, descansava e depois ia estudar, fazer a lição de casa, saber se era conveniente entregar à sua mãe o bilhetinho que a professora mandou. Outras vezes não tinha dado muito certo essa história de entregar a correspondência da escola. Não era mais besta de andar procurando palmada pra própria bunda.
Depois de feita a lição, se apressava para pegar o alforje e dar início à sua jornada de caçador. Gostava sempre de seguir por novos caminhos, novas veredas, subir em pedras jamais visitadas e serras e montanhas ainda não exploradas. E fazia assim por um motivo muito forte.
Segundo ele, vento que se orgulha do poder, da magia e do encantamento que tem sabe muito bem quando as pessoas se aproximam para roubá-lo e colocá-lo num saco, numa bola de assopro, dentro de uma garrafa, e até para ventilar em lugares aonde reinam somente o calor e a sequidão. Por isso vento bom era sempre desconfiado e nunca passava pelo mesmo lugar onde a mesma pessoa estava esperando para aprisioná-lo.
Assim, andando por uma estradinha desconhecida, rumo a um monte ainda não visitado, subia cuidadosamente no local e lá em cima começava a se preparar para fazer daquele dia o de melhor e maior caçada. Pegava o alforje, abria bem a boca, deixava prontinho ao lado porque sabia que ainda não era o momento certo de pegar o vento.
O vento já existia, de vez em quando também brisa e ventania, mas não queria nada daquilo antes do tempo. E segundo ele, o momento certo para caçar vento era quando o sol ia ficando mais calmo, mais suave, os raios já não eram tão escaldantes. Ficava, pois, olhando a maravilhosa natureza ao redor até sentir na pele que já estava chegando o momento.
E quando percebia que o sol ia perdendo a força olhava para o lado, adiante, para o distante horizonte e reconhecia quando a sua presa vinha cortando os ares, silencioso, inocente, apenas soprando, apenas vento, sem jamais imaginar que o caçador estava à sua espera. E ele então pegava a sua armadilha, o seu alforje, a sua bolsinha de couro, e virava sua boca bem de encontro à passagem do vento.
E o vento, coitado, todo orgulhoso e solene, achando que ia passar causando arrepios, de repente se via preso, engolido pela escuridão dentro da armadilha. Rapidamente a boca era lacrada, com o maior zelo e cuidado do mundo, e depois o menino descia feliz e contente, pulando alegre, cantante, menino desatinado, buscando o caminho de casa.
Ainda na estrada, olhava pra frente de casa para ver se enxergava alguma coisa, se tinha gente ali lhe esperando. E já apressava o passo, já vinha correndo, já louco pra se juntar aos amigos que esperavam ansiosos. Já estavam lá sim, esperando o caçador.
E quando chegava, a primeira coisa que os amigos faziam era olhar para o alforje de couro. E de repente ele soltava o alforje no ar, cheio de vento, que logo se transformava numa bola e todos agradeciam ao caçador de vento por mais um dia de brincadeira com bola cheia. Cheia de vento.
E que felicidade os meninos correndo, brincando, jogando, vivendo, chutando a bola, a bola cheia de vento...



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Espelho quebrado (Poesia)

Espelho quebrado



Amor quebrado e recuperado
é o mais frágil espelho colado
por mais que se una e rejunte
com a cola da esperança besunte
o que foi no tempo espalhado
no coração continua despedaçado
como se o rancor em ventania
chegasse faminto em demasia
e deixasse cada caco e pedaço
cortando qualquer nervo de aço
para mostrar que no amor
o espelho jogado que quebrou
só mostrará novamente a face
se não fingir nenhum disfarce
e juntar no perdão poeira e pó
num novo espelho a brilhar só.



Rangel Alves da Costa

TEMPESTADE - 53 (Conto)

TEMPESTADE – 53

                          Rangel Alves da Costa*


Um realismo medonho e assustador: a esposa morta e o marido deitado ao lado, abraçado a ela, entorpecido pelo sofrimento gritante. O silêncio da casa em plena escuridão era cortado pela voragem lá fora, como se a natureza estivesse mais triste e mais furiosa, fazenda da chuva suas lágrimas, da ventania a efemeridade da vida e do ronco dos trovões a dor expressada.
Noutro canto da cidade, trancados para o mundo lá fora, Fabiana e Antonio se desesperavam por não poderem sair dali e ajudar as pessoas que certamente estavam muito necessitadas. Esse sentimento de impotência os deixava ainda mais aflitos, tristes, andando de um lado a outro em busca de uma palavra qualquer que trouxesse algum alento.
Por diversas vezes Antonio tentou abrir a porta e sair para dar uma espiada no mundo lá fora, se é que podia enxergar alguma coisa. Sempre que tentou teve que recuar diante da força da chuva e das rajadas incessantes da ventania devoradora. Havia ainda o medo com os raios e com tudo que estivesse boiando nas águas que se empoçavam por todos os lados.
Fabiana já havia alertado da impossibilidade de se sair da casa se não fosse de carro. Caminhando nem pensar, vez que ninguém sabia dos perigos espalhados por cima e embaixo das águas. E, como ela já havia afirmado, o problema não era somente com o lixo, os troncos, os galhos de árvore, a bagaceirada toda, mas principalmente com as cobras venenosas, os animais mortos que causavam doenças e uma série de objetos e coisas transmissoras de graves enfermidades. Bastava ter como exemplo o mal que fazia a urina de rato espalhada pela água, seria doença certa, e das brabas.
“Não agüento mais isso não Fabiana. Já pensou quantas pessoas estão sofrendo nesse momento, passando necessidade, tendo os barracos caindo por cima, paredes desabando, vendo camas e colchões e tudo que há nas casas sendo levados pelas águas, pelas correntezas, por essa tempestade que não dá trégua nem tem piedade de ninguém? Ao menos ajudar essas pessoas a deixarem suas casas já seria um grande feito, pois, como você mesmo sabe, tem gente que se apega ao barraco de uma forma que não quer sair de jeito nenhum, sendo que muitos preferem que tudo caia por cima do que sair de lá. É um povo que só tem aquilo, que só tem aquela casinha e aquela vida, sem mais nada de jeito nenhum, e por isso mesmo acha que botando os pés fora da moradia nunca mais vai encontrar porta e janela pra dizer que tem palácio...”.
E Fabiana interrompeu o esposo e falou:
“O problema não é o apego nem o medo de perder o que tem, mas a vida que está em perigo. E qual proveito vai tirar depois esses pobres coitados não saindo de casa e vendo tudo se acabar, inclusive eles? A gente sabe muito bem o que é levar toda uma vida pra ter alguma coisa que possa dizer é dono, mas também não pode cegar diante de certas coisas. Tem uma estória que diz que a lagartixa prefere perder o rabo do que o tronco, pois sabe que vai nascer novamente. A gente também sabe que salvando a vida será muito mais fácil mais tarde, ainda que com todas as dificuldades do mundo, reconstruir ao menos parte do que perdeu. Mas o problema é que a maioria dessas pessoas não pensa assim...”.
“E nem poderia pensar assim, nem chegar perto de pensar assim. A gente, que graças a Deus vive bem, teve chance de aprender a ler e escrever, tem alguma formação e sobrevive sem precisar tá pedindo ou catando, faz de tudo por medo de ver ameaçado no que tem. E olhe que somos quase doutores perto daquela pobre gente dali, um povo que tem razão em se apegar demais a tudo que conseguiu juntar, erguer ou construir com tanta dificuldade...”.
E Antonio pausou para permitir que Fabiana botasse pra fora suas angústias, vez que somente assim ficava mais aliviada e sem vontade de sair porta afora de qualquer jeito. E falava a mulher:
“Tenho três bolsas que adoro, mas tem uma que nem em sonho penso em me desfazer dela. Tenho muitas roupas, muitos vestidos e blusas, mas tem uma e outra que gosto mais do que tudo. Tenho panelas novas e um monte de coisas novas na cozinha, mas já, por duas vezes, mandei soldar o fundo de uma panelinha toda troncha e muito antiga que gosto tanto de passar ovos. E sabe por que digo isso Antonio, sabe por quê? Digo isso porque esse meu povo que tá lá agora sofrendo valoriza demais tudo o que tem. A gente ainda tem a opção de escolher entre isso ou aquilo, de ter vaidade e outras besteiras, mas essa minha gente humilde não, pois tudo ali é aquilo mesmo, sem outra opção, sem ter qualquer poder de escolha...”.
E Antonio aproveitou o prumo e disse:
“Mas isso é a mais pura verdade, e só não vê quem não tem os olhos da humildade e nem sente com o coração. Ali, um quilo de feijão é tudo na vida, como é o pedaço de carne, o pão amassado e quase mofo, a roupa rasgada, o chinelo furado. Por isso que o povo se apega tanto a tudo que tem, porque é tão pouco ou quase nada que teme ficar sem nada de vez. E já pensou nisso tudo quando se fala na única casinha que tem pra sobreviver, pra se esconder do sol e da chuva, pra dizer que mora ali? É por isso que faz de tudo pra não sair de lá, pra não arredar o pé de jeito nenhum, ainda que já tenha caído um lado da parede, uma parte do telhado, não exista mais porta nem janela. É por isso que prefere morrer ali dentro, junto com o que tem, do que sair e depois não poder encontrar nada, nem sombra daquilo que era uma vida”.
E depois desse diálogo ficaram novamente andando de um lado para o outro, nervosos, angustiados. Ele foi até a porta, porém voltou antes de tentar abri-la mais uma vez. Virou-se para a esposa e disse, inusitadamente:
“Veja se encontra a chave do carro”. Assustada, ela perguntou: “Mas pra que chave do carro, homem de Deus?”. “Se você não quiser ir tudo bem, mas de qualquer jeito eu vou até aquela comunidade dos arredores do riachinho”. Disse Antonio, disposto, parecendo irredutível.

                                                    continua...





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