SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



sexta-feira, 1 de julho de 2011

TEMPESTADE - 53 (Conto)

TEMPESTADE – 53

                          Rangel Alves da Costa*


Um realismo medonho e assustador: a esposa morta e o marido deitado ao lado, abraçado a ela, entorpecido pelo sofrimento gritante. O silêncio da casa em plena escuridão era cortado pela voragem lá fora, como se a natureza estivesse mais triste e mais furiosa, fazenda da chuva suas lágrimas, da ventania a efemeridade da vida e do ronco dos trovões a dor expressada.
Noutro canto da cidade, trancados para o mundo lá fora, Fabiana e Antonio se desesperavam por não poderem sair dali e ajudar as pessoas que certamente estavam muito necessitadas. Esse sentimento de impotência os deixava ainda mais aflitos, tristes, andando de um lado a outro em busca de uma palavra qualquer que trouxesse algum alento.
Por diversas vezes Antonio tentou abrir a porta e sair para dar uma espiada no mundo lá fora, se é que podia enxergar alguma coisa. Sempre que tentou teve que recuar diante da força da chuva e das rajadas incessantes da ventania devoradora. Havia ainda o medo com os raios e com tudo que estivesse boiando nas águas que se empoçavam por todos os lados.
Fabiana já havia alertado da impossibilidade de se sair da casa se não fosse de carro. Caminhando nem pensar, vez que ninguém sabia dos perigos espalhados por cima e embaixo das águas. E, como ela já havia afirmado, o problema não era somente com o lixo, os troncos, os galhos de árvore, a bagaceirada toda, mas principalmente com as cobras venenosas, os animais mortos que causavam doenças e uma série de objetos e coisas transmissoras de graves enfermidades. Bastava ter como exemplo o mal que fazia a urina de rato espalhada pela água, seria doença certa, e das brabas.
“Não agüento mais isso não Fabiana. Já pensou quantas pessoas estão sofrendo nesse momento, passando necessidade, tendo os barracos caindo por cima, paredes desabando, vendo camas e colchões e tudo que há nas casas sendo levados pelas águas, pelas correntezas, por essa tempestade que não dá trégua nem tem piedade de ninguém? Ao menos ajudar essas pessoas a deixarem suas casas já seria um grande feito, pois, como você mesmo sabe, tem gente que se apega ao barraco de uma forma que não quer sair de jeito nenhum, sendo que muitos preferem que tudo caia por cima do que sair de lá. É um povo que só tem aquilo, que só tem aquela casinha e aquela vida, sem mais nada de jeito nenhum, e por isso mesmo acha que botando os pés fora da moradia nunca mais vai encontrar porta e janela pra dizer que tem palácio...”.
E Fabiana interrompeu o esposo e falou:
“O problema não é o apego nem o medo de perder o que tem, mas a vida que está em perigo. E qual proveito vai tirar depois esses pobres coitados não saindo de casa e vendo tudo se acabar, inclusive eles? A gente sabe muito bem o que é levar toda uma vida pra ter alguma coisa que possa dizer é dono, mas também não pode cegar diante de certas coisas. Tem uma estória que diz que a lagartixa prefere perder o rabo do que o tronco, pois sabe que vai nascer novamente. A gente também sabe que salvando a vida será muito mais fácil mais tarde, ainda que com todas as dificuldades do mundo, reconstruir ao menos parte do que perdeu. Mas o problema é que a maioria dessas pessoas não pensa assim...”.
“E nem poderia pensar assim, nem chegar perto de pensar assim. A gente, que graças a Deus vive bem, teve chance de aprender a ler e escrever, tem alguma formação e sobrevive sem precisar tá pedindo ou catando, faz de tudo por medo de ver ameaçado no que tem. E olhe que somos quase doutores perto daquela pobre gente dali, um povo que tem razão em se apegar demais a tudo que conseguiu juntar, erguer ou construir com tanta dificuldade...”.
E Antonio pausou para permitir que Fabiana botasse pra fora suas angústias, vez que somente assim ficava mais aliviada e sem vontade de sair porta afora de qualquer jeito. E falava a mulher:
“Tenho três bolsas que adoro, mas tem uma que nem em sonho penso em me desfazer dela. Tenho muitas roupas, muitos vestidos e blusas, mas tem uma e outra que gosto mais do que tudo. Tenho panelas novas e um monte de coisas novas na cozinha, mas já, por duas vezes, mandei soldar o fundo de uma panelinha toda troncha e muito antiga que gosto tanto de passar ovos. E sabe por que digo isso Antonio, sabe por quê? Digo isso porque esse meu povo que tá lá agora sofrendo valoriza demais tudo o que tem. A gente ainda tem a opção de escolher entre isso ou aquilo, de ter vaidade e outras besteiras, mas essa minha gente humilde não, pois tudo ali é aquilo mesmo, sem outra opção, sem ter qualquer poder de escolha...”.
E Antonio aproveitou o prumo e disse:
“Mas isso é a mais pura verdade, e só não vê quem não tem os olhos da humildade e nem sente com o coração. Ali, um quilo de feijão é tudo na vida, como é o pedaço de carne, o pão amassado e quase mofo, a roupa rasgada, o chinelo furado. Por isso que o povo se apega tanto a tudo que tem, porque é tão pouco ou quase nada que teme ficar sem nada de vez. E já pensou nisso tudo quando se fala na única casinha que tem pra sobreviver, pra se esconder do sol e da chuva, pra dizer que mora ali? É por isso que faz de tudo pra não sair de lá, pra não arredar o pé de jeito nenhum, ainda que já tenha caído um lado da parede, uma parte do telhado, não exista mais porta nem janela. É por isso que prefere morrer ali dentro, junto com o que tem, do que sair e depois não poder encontrar nada, nem sombra daquilo que era uma vida”.
E depois desse diálogo ficaram novamente andando de um lado para o outro, nervosos, angustiados. Ele foi até a porta, porém voltou antes de tentar abri-la mais uma vez. Virou-se para a esposa e disse, inusitadamente:
“Veja se encontra a chave do carro”. Assustada, ela perguntou: “Mas pra que chave do carro, homem de Deus?”. “Se você não quiser ir tudo bem, mas de qualquer jeito eu vou até aquela comunidade dos arredores do riachinho”. Disse Antonio, disposto, parecendo irredutível.

                                                    continua...





Poeta e cronista
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