TEMPESTADE – 68
Rangel Alves da Costa*
Manuela ficaria abraçada ao velho Timbé por todo o tempo do mundo, pois aquele peito amigo representava o conforto do pai e da mãe que não tinha mais. O velho senhor passou a mão sobre a cabeça dela e procurou se afastar. Sentia uma água diferente molhar os olhos e não queria depois falar embargado.
Considerava-se envergonhado demais para que os outros percebessem que estaria chorando já na curva daquela idade. Protegido pela luz fraquinha da sala, só com uma chama para iluminar ao redor, apenas passou a mão no canto dos olhos e se afastou para acender um charuto.
Contudo, mesmo com as palavras amigas e acolhedoras do velho, Manuela não podia negar que continuava triste demais, angustiada ao extremo, com os pensamentos que se embaraçavam a todo instante. Não ficaria abandonada na rua da amargura, podia contar com um teto familiar como abrigo. Mas indagava por dentro como sua filhinha reagiria a essa nova situação, como faria para sustentá-la dali em diante, o que fazer agora se Marilda não tinha mais nada além da roupa que vestia naquele momento.
Sentindo o peso do sofrimento ainda se abatendo sobre a amiga, De Lourdes chamou-a novamente para o canto onde continuava sentada e procurou mudar aquele ânimo de viver e aquele semblante de tristeza através de palavras. E disse:
“Assim que a chuva passar e fizer uma manhã bem bonita e com um sol mais bonito ainda vamos passear por aí. Aqui na cidade não, pois até reconstruírem ela todinha creio que vai levar muito tempo. Na verdade, estou pensando em caminhar por essas estradas até encontrar lugares maravilhosos para refletir de um modo diferente sobre a vida. Pensar em coisas boas, felizes, coisas que tragam contentamento ao coração. Chega de sofrer, chega de chorar, precisamos gritar essa certeza um dia. A gente precisa também pensar no melhor, não é minha amiga? Aí a gente vai andar por aí e subir numa montanha bem alta e olhar o mundo lá de cima, depois se ajoelhar para fazer uma prece e erguer os braços para o alto, agradecendo ao Senhor por tudo que ele ainda nos dará. Digo ainda nos dará porque temos de guardar uma esperança imensa que seremos mais felizes ainda, muito mais felizes. E Deus vai me ajudar a realizar certos sonhos que tenho e outros mais. E você poderá invocar a ajuda divina para...”.
“Para que minha filha seja feliz, que ela não se abale com a perda da casa que ela tanto gostava, que ela não definhe porque perdeu suas roupinhas, seus chinelinhos, seus brinquedos, suas bonecas, praticamente tudo que dava significado à sua idade, quase mocinha, mas menina ainda. Toda a felicidade que desejo para mim será em nome de Marilda. Bastando que o Senhor Deus ajude que ela supere esse trauma e recupere a vontade de viver e a paz de espírito, já serei uma pessoa feliz demais, a mulher mais feliz do mundo. Homem eu não quero mais não, xodó pior ainda, namorico nem ouvir falar, coisa de cama nem pensar. Minha vida é minha filha, e é essa vida que eu quero ter daqui por diante...”. E Manuela, falando baixinho, com a voz carregada de tristeza, foi interrompida por De Lourdes, sempre nas suas conversas sobre homem:
“E se o seu marido, por um motivo ou outro, chegar à conclusão que nenhuma puta é mais importante ou melhor que a mulher que ele tinha em casa e que é a mãe de sua filha, você aceitaria ele de volta?”.
E foi o momento de Manuela esboçar um sorriso para responder: “Agora que não tem mais casa, não tem mais nada, é que ele não volta não, de jeito nenhum. Ninguém quer voltar pra onde não há mais endereço. Mas se um dia eu estivesse de novo dentro de quatro parede e ele chegasse batendo na porta, se a filha, que também é dele, quisesse ir abrir a porta poderia ir sem briga. E se ela quisesse dar de dormir e comer ao pai, não teria nenhum problema. Se ela me pedisse pra ele se arranchar debaixo do mesmo teto, certamente que eu atenderia o desejo de Marildinha. Mas quanto a mim, quanto à minha pessoa, mulher e que passou o que já passei, aí seria muito diferente, pois jamais ele vai poder me chamar de novo de sua mulher. Na casa ele poderá ficar, se assim a filha achar melhor, mas nem ao meu lado nem por cima de mim. Perna aberta pra ele pensar que é a outra jamais. Pra mim ele morreu, tá enterrado vivo. E sou mulher de palavra, sou pobre, mas sou honesta e de palavra. Pra mim ele morreu de vez, pode acreditar no que digo”.
De Lourdes já tinha ouvido falar bem desse aspecto decidido e do encorajamento de Manuela, também já conhecia sua firmeza, seu idealismo e sua seriedade. Mas a partir do que ouviu da amiga, dessas palavras tão sinceras que brotaram sem mágoa nem rancor, e todas pautadas numa realidade desapaixonada, acabou gostando ainda mais da danada. Pena que no seu entendimento homem não era coisa pra ser rejeitada de jeito nenhum, mas enfim.
E de repente ouviram o velho Timbé chegar mais pra perto e perguntar se as duas aceitavam tomar um golinho de pinga em louvor da alma dos que já haviam partido pro outro mundo por causa daquela tempestade, pois tinha certeza que aquele tempo enraivecido já havia deixado seu rastro macabro também nas pessoas.
“Mas não é melhor acender uma vela para as pobres e tristes almas que se foram do que tomar uma pinga, papai?”. Foi o que a filha perguntou, pra depois ouvir a resposta diretamente da boca de Sinhá Culó, que veio da cozinha defender o gesto do velho marido:
“O tempo lá fora já acendeu vela demai e continua acendeno. Dento das casa tomem, aqui mermo e nas outa, tenho certeza. Mai verdade é que se deve beber tomem os morto e se deve beber pro esprito subir no céu festejado. Por isso eu tomem vou beber um golim dessa pinga. Traga ela aqui Timbé”.
E os mortos foram reverenciando na pequena dose entornada por cada um. Dessa vez não se cuspia em seguida, que era para o morto não continuar vagando na terra, arrimando pelo chão. Era a tradição em meio ao caos, ao tormento, tornando ainda mais instigante esse mistério da vida, que é a morte.
continua...
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com
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