SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

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sábado, 23 de julho de 2011

TEMPESTADE - 75 (Conto)

TEMPESTADE – 75

                          Rangel Alves da Costa*


Zezeu, o irmão de Totinha, aquele mesmo que tinha o dom da adivinhação, de prevê os acontecimentos ou coisa parecida com pressentimento, nem tinha mais vontade de dormir depois do incidente da cobra e muito menos podia ficar em paz, pensando em cochilar e sonhar com brincadeiras pelo ar, com fazendas cheias de gado nas nuvens, nem com nada. A mãe não deixava.
Gecineide, sua mãe, ao invés de perguntar ao esposo Julião sobre os acontecimentos, chamava o menino pra perto de sua saia e se danava a querer saber se o mundo ia acabar, se mais alguém ia morrer, quem já havia perdido tudo na tempestade, enfim, um monte de coisas que ele só ouvia, porém insistia em não responder. Só gostava de falar sobre o que lhe interessava, e pronto. E foi por isso que se voltou para a mãe e disse:
“Depois de tantas mortes, tantas casas caídas, tantas coisas levadas pelas águas e tanta doença trazida pelas correntezas cheias de sujeira, até que enfim não vai demorar muito pra essa chuva parar. E quando parar vai parar de vez e de um jeito que ninguém nunca viu chuva ir embora assim. Tô sentindo isso porque tô ouvindo isso bem de dentro do coração do maluquinho Teté. O coitado agora tá aperreado, com um remorso que não acaba mais, tá em tempo de explodir de raiva pelo que fez. O que ele fez ainda não sei, mas sei que ele tem um poder diferente pra fazer a chuva parar. E isso vai acontecer porque ele tá arrependido demais, se sentindo culpado por tudo, tantas mortes, destruições, doenças, aperreios...”.
Zezeu estava com razão. Ouvindo as palavras de Tiquinho como se fosse uma pontada no coração, vez que pessoas com grau de insanidade são sensíveis demais ao que ouvem e observam, Teté não disse nada sobre a observação feita pelo amigo, sobre a culpa de alguém por aquela tempestade devastadora, mas seu sentimento entrou em erupção.
Dentro do coração lhe surgia a culpa por tudo que estava ocorrendo. E na mente dançavam imagens do seminarista estendido na água empoçada e depois sendo carregado nos braços, a professorinha queimando toda deitada num canto de sala, a casa de Manuela em escombros e a boneca como testemunha da destruição, as mulheres trancadas e barulhando na igreja, os meninos sem poder sair da escola, as pessoas pobres em extrema agonia por todos os cantos, os telhados voando pelos ares, os muros caindo. E ainda todos aqueles que haviam morrido por causa do tempo ruim, Mazé agonizando e morrendo, o coitado do esposo com ela estendida no meio da tempestade, Antonio e Fabiana se arrastando pelo meio das águas para se salvar e depois ela sendo carregada nos braços, tanta dor, tanto grito, incontidos lamentos e gemidos, olhos tristes e desesperançados, vidas perdidas, tantas vidas agora sem rumo e sem prumo. E tudo isso debaixo da escuridão, em meio ao medo e ao terror, em meio ao nada ver e tudo sentir, ao nada enxergar e tudo vim de encontro como fúria dos deuses contra um povo humilde e sem outras armas para se proteger a não ser a fé, a extrema fé, que ainda gritava o seu canto mais forte ainda que em meio à destruição. E agora, Teté, você não é o dono da tempestade, não foi você que fez que chovesse assim para punir quem lhe perseguia e não gostava de você? E agora, Teté, nenhum remorso ou sabe que lhe cabe pena maior? E agora, Teté, você sabe que pode ser punido, sofrer uma punição divina por ter causado tudo isso? E agora, Teté?
E o coitado do maluquinho estava realmente a ponto de explodir com tantos pensamentos e tantas dúvidas em sua cabeça um tanto desmiolada. Intimamente sabia que tinha de dar um basta urgentemente naquilo tudo que havia provocado. Se na sua cabeça era ele o dono da tempestade, então caberia a esse senhor do tempo sentir que sua ação já havia extrapolado todas as medidas. E só voltou a si desse turbilhão de culpas e devaneios porque Tiquinho perguntou se ele estava passando bem, sentindo alguma coisa, diante da estranha mudez.
“Ah, sim que saudade da minha manhã de sol, do meu passarinho, da minha janela, da minha goiaba cheia de bichinho, da minha estradinha, da minha montanha. Ah, minha montanha, nunca mais subi pelas suas veredas pra gente prosear um bocado, mas amanhã estarei por aí, estarei de volta, assim que o sol voltar a brilhar...”.
Aos ouvidos do menino, o maluquinho estava variando, dizendo coisa com coisa, falando em manhã de sol debaixo daquela enrascada medonha. “Você tem certeza que tá bem, Teté, não está sentindo alguma coisa não? Acho que você tá surtando...”. E ele, todo envergonhado, falou:
“Desculpe, é que eu tava viajando no pensamento, mas vamos lá na sala falar com os meninos e chamar Marildinha pra acompanhar a gente. O problema é dizer a ela o motivo de a mãe estar arranchada lá em casa. Não sei nem por onde começar pra dizer que de tudo que elas tinham só restou uma boneca”. Mas Tiquinho fez uma observação curiosa, pertinente ao caso:
“Você veio aqui me dá a notícia de que, lembra? Minha mãe morreu e mesmo sofrendo sei que não tenho me enterrar com ela. Marildinha perdeu a casa que tinha pra morar, e casa se arranja outra, se constrói, se mora de aluguel. E eu poderia fazer o mesmo com relação à segunda mãe que eu tinha? Marildinha vai sofrer também, principalmente porque toda perda é coisa pra sofrimento, mas o problema dela está muito mais de resolver. Vamos lá Teté, vamos logo que quero ver minha mãe...”.
“Parece que eu ouvi você falar em segunda mãe, por que falou assim Tiquinho?”, indagou com muita curiosidade. E o amiguinho respondeu em voz pausada:
“Sou filho do meu pai e da minha mãe, e todos nós somos filhos de Deus. Deus também é pai de Jesus Cristo, que é filho de Nossa Senhora. Então Jesus Cristo é meu irmão e Nossa Senhora é também minha mãe. Por isso tenho duas mães, Nossa Senhora, que é a mãe celestial, e minha mãe Mazé, que é mãe terrena. Digo que é porque sempre estará viva ao meu lado...”.
Teté achou tão bonito o que ouviu que não encontrou emenda alguma a fazer. Também estava percebendo que o amigo já sentia a morte da mãe como dor a ser superada sem grandes traumas. Isso era nítido nas suas palavras. Agora teria que cuidar de Marildinha. E foram encontrar a sapeca já na porta da sala, gritando e dizendo que a professorinha já havia despertado e precisava falar com ele, com o maluquinho.

                                                       continua...





Poeta e cronista
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