SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



quinta-feira, 14 de julho de 2011

RELVA MOLHADA (Crônica)

RELVA MOLHADA

                      Rangel Alves da Costa*


Um dia ainda me jogo, me deito na relva molhada e deixo que meu corpo vá rolando pelo terreno íngreme, vencendo as pedras, plantas e espinhos, e siga ao seu querer em direção ao regato que vai cortando a minha vida sem lágrimas. As lágrimas foram emprestadas para o banho desse entardecer, para lavar alma, para tentar renascer.
Cresci sonhador, lendo J. D. Salinger e o Semeador no Campo de Centeio, mas nunca havia lido Walt Whitman, aquele mesmo de barbas brancas e longas, e suas Folhas de Relva. Antes que a relva, a minha relva ficasse totalmente molhada, talvez desse tempo de ler alguma coisa sobre o relvado e suas folhagens.
“Casas e quartos se enchem de perfumes .... as estantes estão entulhadas de perfumes/ Respiro o aroma eu mesmo, e gosto e o reconheço/ Sua destilação poderia me intoxicar também, mas não deixo/ A atmosfera não é nenhum perfume .... não tem gosto de destilação .... é inodoro/ É pra minha boca apenas e pra sempre .... estou apaixonado por ela/ Vou até a margem junto à mata sem disfarces e pelado/ Louco pra que ela faça contato comigo...”.
“A fumaça de minha própria respiração/ Ecos, ondulações, zunzuns e sussurros .... raiz de amaranto, fio de seda, forquilha e videira/ Minha respiração minha inspiração .... a batida do meu coração .... passagem de sangue e ar por meus pulmões/ O aroma das folhas verdes e das folhas secas, da praia e das rochas marinhas de cores escuras, e do feno na tulha/ O som das palavras bafejadas por minha voz .... palavras disparadas nos redemoinhos do vento/ Uns beijos de leve .... alguns agarros .... o afago dos braços/ Jogo de luz e sombra nas árvores enquanto oscilam seus galhos sutis/ Delícia de estar só ou no agito das ruas, ou pelos campos e encostas de colina/ Sensação de bem-estar .... apito do meio-dia.... a canção de mim mesmo se erguendo da cama e cruzando com o sol...”.
“Uma criança disse/ O que é a relva? trazendo um tufo em suas mãos/ O que dizer a ela?.... sei tanto quanto ela o que é a relva/ Vai ver é a bandeira do meu estado de espírito, tecida de uma substância de esperança verde/ Vai ver é o lenço do Senhor/ Um presente perfumado e o lembrete derrubado por querer/ Com o nome do dono bordado num canto, pra que possamos ver e examinar, e dizer/ É seu?”.
Sem querer, Whitman molhou minha relva. A erva rasteira que corria verdejante embaixo de mim, ao meu redor e mais ao longe, ficou toda molhada após a leitura de trechos do poeta. Dos cílios dos olhos, feitos azevéns que brotam acima do olhar, as sobras surgiram para fazer com que as lágrimas descessem, e correndo, feito fio de rio de água cristalina, molhassem todo o relvado e minha roupa no meu corpo nu.
Não tenho tempo para entristecimento, para chorar, para o banho nos cantos e poesias senão ao entardecer. Onde vivo, moro e habito, nem mais além da montanha de pedra há qualquer jardim verdejante, qualquer relva, qualquer azevém. Piso em espinhos e caminho sobre pedras, mas coloco Whitman no meu alforje de caçador e saio por aí para deitar por cima dos capinzais ressequidos, à sombra do pensamento em flor, tomado dessa paisagem que encanta e angustia.
Se levo Folhas de Relva comigo, chego ao descampado perto do córrego da minha aldeia e me deito e me permito não mais estar ali, relembrando silêncios e solidões, até que o luar me acorde e me faça levantar do leito de relvas, do relvado que me acolheu e me transformou num ser mais humano e sonhador.
E ao levantar e caminhar pela mesma estrada de pedras e espinhos, porque é assim que a vida acontece e me chama, olho para atrás e ainda posso ver, iluminado pela luz do luar, meu lindo campo de relva que se estende até onde o meu olhar quiser. E como sou feliz a partir desse instante, como sou folha, folhagem e relva, tão leve e inebriado que o vento da noite poderia me levar em viagem.
Chego a minha casa, coloco o alforje na cabeceira da cama e nu como sempre estou, faço o meu olhar, lá fora, ler novamente e aprender todos os poemas da noite, do céu, da lua, das estrelas. Depois deito na relva molhada de sonhos bons e adormeço.



Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blorangel-sertao.blogspot.com


Nenhum comentário: