TEMPESTADE – 57
Rangel Alves da Costa*
Os mistérios acontecem para desafiar a imaginação, incutir no ser humano a certeza que acontecem muito mais coisas, envolvendo ele próprio, do que alguém poderia imaginar. É preciso que se diga isso porque, não se sabe como, foi precisamente o seminarista, o enfermo, o adoentado demais, que aproveitou a semiescuridão e o distanciamento das mulheres e alcançou os escritos sem ninguém perceber.
Melhor seria dizer que foi a pessoa do seminarista, o corpo do rapaz que se ergueu do leito e foi até o local apanhar o caderninho e o que havia espalhado ao redor, mas não significando que isto tenha sido feito conscientemente, por impulso de levantar e ir até lá precisamente para conseguir tal intento.
Melhor pensar assim porque seria impensável que um moribundo, uma pessoa de saúde completamente abalada e correndo até mesmo risco de morrer, tivesse a força suficiente para levantar e colocar em prática tal intento. Impossível que um doente fraquejado demais, no meio da escuridão, aja com tanta maestria.
Ademais, mesmo conhecendo o perigoso conteúdo dos escritos, como já havia afirmado às mulheres, não sabia que o caderninho havia sido roubado por Antonieta, que ela havia lido parte do conteúdo, desmaiado pelo que leu e principalmente que estava caído naquele local. Do mesmo modo não sabia que as mulheres estavam entretidas umas com as outras e que o local poderia ser alcançado sem que percebessem.
Mas não há que se negar que foi o doente que levantou, caminhou até ali, recolheu cuidadosamente o que queria e depois voltou ao seu leito de enfermo. Seria, então, o corpo do doente tomado por outra pessoa, algo misterioso havia se apoderado dele e perpetrado tais ações? Se isto puder ser confirmado, quem seria então, quem teria a intenção de fazer aquilo, por que e com qual objetivo? E o que é mais importante: Quem ou o que teria feito, de onde veio, onde está ou para onde foi?
Por mais estranho que pudesse parecer, mas o próprio seminarista não podia responder a nenhuma dessas indagações. Continuava realmente muito doente, agora despertando mais da sonolência dolorida por causa da bebida, cujo efeito ia fazendo com que começasse a reagir, querendo abrir os olhos e olhar ao redor. Mas se os abrisse de vez não encontraria ninguém ao lado, pois as mulheres continuavam no outro vão da igreja tentando entender o que havia ocorrido.
A mais preocupada continuava sendo Antonieta. Quando Custódia voltou da procura e segredou-lhe que não havia encontrado nada, a mulher quase desmaiou novamente. Isso não podia ter acontecido porque tinha certeza que estava com os escritos nas mãos e que caíram no chão quando desmaiou. Logicamente não disse se tinha lido ou o que tinha lido, mas que apenas desmaiou enquanto estava com escritos nas mãos.
Sentindo que Antonieta estava escondendo alguma coisa, Custódia acabou perguntando, e de modo que todas pudessem ouvir, o que realmente a tinha feito desmaiar. E como resposta ouviram:
“Vocês me esculacharam de lá de dentro, numa atitude que ainda não engoli e quem fez isso vai me pagar certinho, e quando cheguei aqui nessa escuridão, sozinha, esculhambada como fui e amedrontada, a primeira coisa que fiz foi me ajoelhar nos pés da cruz do Senhor e pedir que olhasse por mim e me livrasse de tanta maldade praticada injustamente comigo. Já estava no terceiro pai-nosso quando senti uma mão tocando no meu ombro. Fiz de conta que não era nada e continuei rezando. Aí senti a mesma mão tocando no meu outro ombro. Quando isso aconteceu então comecei a me tremer toda, a espichar o cabelo todo, a ficar sem saber o que fazer. Então rezei ainda mais forte pedindo pra Deus me livrar daquela assombração, me livrar daquela coisa que estava atrás de mim. E parecia que tinha surtido efeito, pois nenhuma mão voltou a me cutucar por trás. Então, agradeci ao Senhor e ainda tremendo me virei de vez para ver se tinha alguma visagem, alguma coisa medonha por trás, e aí, e aí, e aí...”.
“E aí viu uma alma do outro mundo”, “Viu o finado Bacuré mijando em pé”, “Viu a assombração mais feia do mundo”, “Viu um homem nu e desmaiou”, “Viu sua sombra pecadora e se apavorou de verdade”, e quase todas começaram brincar com a história mal contada de Antonieta, menos Minervina que exigiu que ela dissesse o que tinha realmente visto.
Então ela baixou a cabeça, um tanto quanto envergonhada, ou se fazendo de inibida como era do seu feitio, e falou: “E aí eu vi um anjinho iluminado bem atrás de mim. Foi isso, foi isso sim. Eu vi um anjinho iluminado bem atrás de mim...”. “Mas você desmaiou por causa de um anjinho iluminado? Que história é essa Antonieta, você não tá mentindo não?”.
Toda sem jeito, procurando um modo de se sair, ela arranjou essa: “Mas depois o anjinho virou num bichão e aí eu tive medo, gritei e desmaiei”. “Mas vá aparar chuva com a peneira sua conversadeira, sua desavergonhada, mentirosa. E a gente ainda perde tempo ficando aqui ouvindo essas baboseiras quando já devia ter voltado pra cuidar do coitadinho do seminarista. Vamos lá meninas e você pode ficar Antonieta. Ora, mas quem já se viu...”. E Minervina saiu feito relâmpago, acompanhada das outras.
Antonieta até achou bom ficar ali sozinha, pois seria a chance de procurar o caderninho e as outras folhas que caíram. Não acreditava que Custódia não pudesse ter encontrado, pois tinha certeza de que continuavam naquele local. Mas se não estivessem teria um problema sério para resolver, afinal precisava terminar de ler, e de qualquer jeito, aquela coisa terrível que lhe fez desmaiar.
Ao voltarem à sacristia quase não acreditam no que viram. Uma luz incandescente estava ao lado da cama e de repente sumiu.
continua...
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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