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quarta-feira, 6 de julho de 2011

TEMPESTADE - 58 (Conto)

TEMPESTADE – 58

                          Rangel Alves da Costa*


Diante da luz rapidamente sumida, as mulheres se olharam e, ainda que não pronunciassem nada, todas estavam propensas a concordar em pensamento que aquilo brilho diferente e tão repentinamente disperso só poderia ter sido um anjo que estava ali ao lado do enfermo.
Ainda absorvidas pela surpresa, se aproximaram da cama, trouxeram a chama da vela mais pra perto e constataram que o rapazinho, diferentemente de instantes atrás, quando estava parecendo uma fornalha a ponto de explodir, cheio de convulsões e deixando jorrar suor que mais parecia álcool saindo pelos poros, agora parecia simplesmente dormir.
Realmente, ainda com aspectos, a cor, a feição dos enfermos em estava grave, porém com o corpo menos inquieto, a temperatura normalizando, o semblante mais aparentemente vivo e fortalecido. Parecia mesmo dormir, talvez sonhando, talvez viajando, talvez se reencontrando para a vida.
Por mais contraditório que pudesse parecer, as mulheres ainda não sabiam se tinham avistando ou não um anjo em voo de luz, mas tinham certeza que havia sido realmente um anjo. E todas, logicamente aumentando a percepção do que viram, começaram a relatar suas certezas, como se uma não tivesse visto apenas e tão somente o que todas puderam ver.
Socorro disse que deu pra ver quando as asinhas dele foram se transformando num feixe de luz e depois desfazer no ar. Filó argumentou que pareceu um milagre, algo como uma benção divina, mas chegou a ver um rosto de criança todo iluminado e cheio de ternura, como só possui os anjos. Custódia jurou por tudo na vida que tinha certeza que eram três anjinhos, um mais na frente e dois mais atrás, num voo que parecia chuva de estrelas. Rosinha afirmou que ouviu a voz do anjo abençoando o seminarista e até teve a cara de pau de repetir as palavras que ouviu: fica com Deus bom filho, que sua cura está garantida.
Minervina não agüentou mais ouvir tanta mentira e terminou logo com a disputa de invencionices e fantasias:
“Mas vocês não têm jeito não, não tomam prumo de jeito nenhum. O que vocês viram eu também vi e jamais nada que pudesse dizer que era um anjo pelas asas, pelo rosto angelical, pelas doces palavras, pelos outros anjinhos que voavam ao lado. Nada disso. O que eu vi e vocês também foi apenas um feixe de luz, incandescente e diferente, que se dissipou pelos ares assim que entramos aqui na sacristia. Só isso, e nada mais que isso. Agora, pra falar a verdade, como cristã prefiro mesmo acreditar que tenha sido um anjo e um anjo de bondade, de felicidade e de paz, um anjo celestial e de luz. Quem sabe um anjo que viesse anunciar que esse fim de mundo lá fora vai parar, que o nosso amiguinho vai ficar logo curado, que depois dessas lições nós todas possamos mudar o modo de ser e de viver. Então prefiro acreditar que tenha sido mesmo um anjo, mas nem por isso vou dizer o nome dele nem a hierarquia, se querubim, serafim, de guarda, de tudo o mais. Então deixem de mentir e passem a acreditar apenas que foi um anjo, e pronto, e que este anjo trouxe coisas boas para todos nós. Tá certo? Agora vamos fazer um pouco de silêncio que é para Tristão não despertar assustado. Olhem pra ele, não parece confortavelmente dormindo?”.
Enquanto isso, no outro vão da igreja, Antonieta só faltava enlouquecer em busca dos escritos. Mesmo na escuridão, já havia deitado e rolado pelo piso, passado a mão por todo lugar, indo de canto a canto com a vela na mão, mas nenhum sinal daquilo que havia se tornado tão importante.
Estranhamente, mas enquanto se esmerava incansavelmente nessa procura conversava sozinha, primeiro baixinho, depois como se estivesse falando para alguém ouvir. E foi um passo para os primeiros sorrisos, as alegrias sem motivação alguma, mas também, e quase tudo ao mesmo tempo, o medo, o grito incontido, o rosto marcado por um aspecto diferente, a vontade de sair correndo, de tirar a roupa de voar, de se matar, de fazer um monte de coisas paralelamente. Estranhamente com aspecto de quem já não está com o juízo normal, com atitudes de iniciação na insanidade, o compasso da loucura que talvez fosse surgindo. Será que Antonieta estava enlouquecendo ou aqueles escritos lhe tinham colocado nos passos da insanidade?
Para fugir dessa fronteira insana, linha frágil demais entre a alegria de ontem e o sofrer de hoje, entre o sorriso e a dor, entre o momento e o inesperado, entre o acontecimento e a consequencia, é que, noutro norte da cidade, na casa de Sinhá Culó e do velho Timbé, a solteirona De Lourdes, tão cheia de problemas como ela só, ainda assim fazia tudo para que Manu não se entregasse aos pensamentos ruins.
Se deixasse a pobre da mulher repisando perguntas se era verdade mesmo que sua casa havia desabado, conforme Teté sinceramente falou, então ninguém sabia o que seria dela. O problema é que mais cedo ou mais tudo teria que ser confirmado, dito a verdade, mostrando que sua vida agora teria que ser totalmente diferente depois dessa tempestade.
Sinhá Culó, que não era de se meter em conversa de ninguém, até que procurou prosear para ajudar a filha no conforto à amiga. Conforto porque fugia de assuntos ruins, de tragédias e das possíveis consequencias daquele dia, tentando esfriar a tensão com conversas mais descompromissadas, amenas, que dessem para sorrir de vez em quando.
E Sinhá Culó se propôs a contar um “causo”, como se dizia por lá:
“Eu tinha uma prima, sirigaita que só, chamada Merita. Menina nova, bonita, vistosa, pareceno espiga de mio novinha soltano os cabelo agalegado. Por onde ela passava era meio mundo de zoio a zoiar ela, num assovio que retinia, numa zoada de beijo mandado que se ouvia de longe. Inté moço rico, dos mai rico do lugar, ficava todo inxerido pra ela, mandano presente e frô. Mas a bichinha parecia que tinha nascido pra moça veia e num oiava pra ninguém nesse mundo. Mai era home demai atrais dela que enjoava...”.
E ouvindo falar em tanto homem, De Lourdes suspirava, entristecia o coração e ficava a ponto de chorar sentindo a falta de um. Já Manu ficava lembrando o marido que a havia trocado por uma quenga. Mas a velha continuava:
“Pra que acabasse com aquele montão de home atrais dela, entonce o pai mandou que fosse ficar uns tempos na casa de uma tia minha, noutro lugar. E aí ela foi, arrumou a mala e foi. Mas o pior é que nunca chegou ao destino, poi sumiu no meio do caminho...”.
“Um bicho comeu ela?”, perguntou Manu. “Comeu, mai foi outro bicho. E foi o bicho padre do lugar que tinha marcado com ela pra se encrontá bem no meio daquele caminho. E ela se danou no meio do mundo com o da batina, a danada. Penso inté que virou fogo corredor...”.

                                                   continua...





Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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