TEMPESTADE – 62
Rangel Alves da Costa*
Antonio não acreditou no que viu porque seria impensável encontrar a mulher ali, naquelas condições, com o mundo todo se acabando ao redor. E continuou não acreditando até que ela, antes reconhecida apenas pelas luzes ligeiras do relampejar, gritou dizendo que estava ali para lhe salvar.
Mas não havia tempo para outras conversas, perguntas e respostas, senão para agir rapidamente. E ela, com disposição e força muito além do que se poderia imaginar, nem pensou duas vezes e puxou-o de vez do carro e fez que saísse rapidamente por cima de tudo, ora se arrastando ora sendo empurrado.
Quanto ao veículo tanto fazia que ele se enchesse completamente de água ou não, que ficasse imerso ou se desfizesse igual papelão. Diante do quadro dantesco, onde a vida do esposo havia sido salva por pouco, à força do amor, da fé e dos mistérios desconhecidos, pensar no destino do veículo seria muita mesquinharia.
Com efeito, quando já estavam chegando perto do poste da esquina ouviram um barulho estranho, e quando olharam pra trás o carro estava sendo levado igual a um barquinho de papel. Pouco importava o que acontecesse com ele, onde fosse parar, se o que mais queriam na vida era colocar os pés em terra firme, chegar logo em casa, trancar a porta e agradecer a Deus pela vitória da salvação.
Teté, que já estava chegando perto da igreja, ouviu o barulho do carro sendo arrastado e enxergou os dois vultos se segurando no poste. Parou um instante e ficou com a triste indagação se deveria ir até lá ver de perto o que era ou não, o que estava ocorrendo. Se fosse e encontrasse gente conhecida certamente perderia muito tempo ajudando e não faria imediatamente o que teria de fazer.
Decidido a seguir adiante, apenas olhou para o alto e perguntou, ninguém sabe bem a quem, se estavam se intrometendo na sua chuva, na sua tempestade. E disse ainda que fizessem o favor de não se meter onde não era chamado, pois aquilo tudo era seu e somente ele tinha o poder e o direito de fazer o que bem entendesse, de fazer a chuva parar num instante ou fazer com que continuasse indefinidamente. O pior, disse ele, é que estavam fazendo coisas no seu lugar que não deveriam, pois a tempestade era só pra assustar, pra castigar determinadas pessoas, mas não fazer com que os outros sofressem na pele o que não deveriam. E disse ainda, muito zangado, que já não tinha gostado da ordem não dada por ele para muitas casas serem destruídas, como a de sua amiga Manu, e muito menos que causasse tanto aperreio à vida de pessoas inocentes, como o seminarista e a professorinha. Por fim, disse que já estava bom que o engraçadinho tomasse o seu rumo e o deixasse tomando conta de sua chuva. Era melhor que fizesse senão ele iria desmoralizar quem achava que tinha algum poder e faria com que o sol voltasse a brilhar no mesmo instante, ainda que já fosse noite fechada.
Depois de dizer umas poucas e boas para alguém lá no alto, Teté, ainda zangado, se voltou para os lados da igreja e caminhou rapidamente naquela direção. Teria que primeiro dar o remédio do seminarista ou da professorinha? Teria que ir lá à escola e depois voltar para igreja? Ou teria que voltar em casa pra perguntar à sua mãe o que deveria fazer agora? Questões mal resolvidas numa cabeça complicada e que somente o impulso faria com que desse resultado, ou não. Mas já que estava subindo a calçada, resolveu bater na porta da igreja.
“É o carteiro?”. Gritaram lá de dentro numa pergunta sem pé nem cabeça. E quem gritava não era outra pessoa senão a completamente estranha Antonieta, que agora resolveu ficar se arrastando de quatro o tempo todo, indo de um canto a outro, perguntando se o chão tinha visto o seu caderninho.
“Abra aqui a porta que trago o remédio do seminarista Tristão. Anda, abra logo que já passou muito tempo dele tomar. Chega aqui ligeiro, abra logo”. Começou a bater na porta, a dar gritos, mas só ouvia coisas que não tinham nada a ver com os seus chamados: “Espere que já estou tirando a roupa pra ir abrir a porta. Você sabe que eu não ia atender o carteiro vestida, não é mesmo? Já vou nuazinha que é pra depois a gente tomar banho aí fora, nessa pingueirinha da varanda...”.
“Deixe de falar besteira e abra logo essa porta, anda”. E Teté já estava raivoso demais, em ponto de se afastar um pouco e fazer carreira pra derrubar a porta com tudo. Ia fazer isso mesmo, já dando um passo para trás, quando ouviu o barulho dela sendo aberta e a empurrou com toda a força.
Antonieta caiu nua estatelada no chão, gritando, pedindo socorro, dizendo que o carteiro havia terminado tudo com ela. Os prantos eram tão altos que chamaram a atenção de Minervina e Socorro, que correram até o local. Não acreditaram no que viam. Teté, em pé, sem entender nada do que estava se passando, olhando Antonieta completamente nua se lamentando pelo chão.
“Meu Deus do céu, o que você fez com ela Teté?”, perguntou Socorro entre o susto e a desconfiança. E o maluquinho disse apenas que havia chegado com o remédio de Tristão e quando empurrou com força a porta para entrar encontrou aquela amalucada caída no chão, daquele jeito como ainda se encontrava.
E não puderam dizer mais nada porque Antonieta, numa cena tristemente terrível, voltou a ficar de quatro e começou a procurar novamente seu caderninho. Enquanto zanzava, naquela posição inacreditável, dizia: “O carteiro chegou e não trouxe minha carta nem o meu caderninho. Um caderninho novo que mandei ele trazer. Mas não tem nada não que vou achar aquele outro que estava aqui. Eu sei que estava. Mas onde está? Caderninho, meu caderninho, ei bichinho, ei meu caderninho, venha pra mim, venha...”.
“Ela enlouqueceu, a coitada!”. E Minervina correu para vesti-la e ver o que podia fazer. E Teté, como se não tivesse presenciado nada, apenas disse: “Como é triste ver uma pessoa que estava boazinha ficar doida assim do nada, de uma hora pra outra. Mas o que terá sido?”.
continua...
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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