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quarta-feira, 20 de julho de 2011

A MANHÃ E O MENINO (Crônica)

A MANHÃ E O MENINO

                            Rangel Alves da Costa*


A manhã dormiu na noite e acordou ainda na madrugada para se fazer alvorecer; o menino dormiu na noite e sonhou na madrugada que a manhã estava chegando. A manhã acordou mais cedo, o menino no rastro de sua luz. Depois foi tudo alvorada, na manhã e no menino.
A manhã sempre festiva, cenário sempre mágico e ideal para a vida mostrar seu poder, a natureza mostrar sua força, a vida mostrar como é bela. E veio o canto do galo, a galinha ciscando, o pássaro cantando, a folhagem farfalhando, a bicharada reinando, as águas se azulando, toda a aldeia festejando.
O menino malino, traquina, arreliento, bicho de pé no chão que nem chinelo de ferro ficava um segundo, pulou da cama e saiu em disparada. Tudo santo dia fazia isso, que chovesse ou fosse de tempo aberto, ele não queria nem saber. Corria lá fora, cortava estrada, jogava a roupa no chão e mergulhava no riachinho.
E todo dia aquela mesma conversa com a natureza, as águas, tudo ao redor, dizendo o que ia fazer mais tarde. E as águas, tementes que só, borbulhavam desconfiadas; o vento se afastava apressado com medo das reinações do menino. Só mesmo o seu pequenino amigo invisível, que chegava pairando no ar e somente ele via, dizia “Faça, faça mesmo!”.
Depois do banho já estava pronto para viver a manhã. Ou a manhã que se aprontava toda para esperar o menino? Verdade é que a manhã gostava dele demais, como se fosse um irmão. E era, tinha certeza e os fatos mostravam assim. E irmão gêmeo, no mesmo sangue da vida, na mesma herança da natureza divina, na mesma linhagem daqueles que ainda estão no início de tudo.
Ora, a manhã era o menino do dia, era a criança de tudo que acontecesse mais tarde. O menino era a manhã do homem, de tudo que o destino lhe reservasse mais tarde. A manhã nascia pura, inocente, indo se transformando com o passar das horas e daí em diante. O menino estava no estado de pureza do homem, sem maldade, na folha mais virgem da vida, sendo escrita pelas imposições do tempo e os desígnios reservados a cada um.
Mas nesse mundo que não atrasa relógio e só vive do ontem para matar de saudade, tudo vai fazendo seu percurso sem dar tempo pra demoras, sem permitir que se refaça depois de cada segundo, a manhã e o menino já nasciam para as durezas e para o sofrimento sem saber. Verdade é que se soubesse o que aconteceria mais tarde nem fechariam os olhos na noite que era para viver mais cada momento da paz ainda existente.
Assim, a manhã que nasce, que encanta, que brilha, vai avançando nas horas, a cada segundo e minuto, e de repente já é de sol forte, já não possui mais aqueles tons dourados por cima das serras, as folhas molhadas de orvalho, um embranquecimento bonito que se estende pelos campos e vastidões. E o sol vem surgindo forte, quente, ardente, trazendo consigo a luta e o suor. E antes do meio dia ninguém mais lembrará da manhã, pois já é tempo difícil como um tempo qualquer.
Do mesmo modo o menino. Enquanto a vida é a mais sublime manhã, e por isso mesmo despreocupadamente brinca, corre, joga, sonha, faz suas reinações e nunca se cansa de ser criança e viver sua idade, mais tarde, quando o tempo lhe chama para ser adulto, se torna na mesma dolorosa aflição da manhã ao chegar o sol abrasante do meio-dia. Daí em diante é não ter mais tempo para quase nada, somente para suportar as durezas e tristemente lembrar o passado onde tudo acontecia como uma linda manhã.
E de mãos dadas, aqueles que um dia foram manhã e menino caminham para o anoitecer. A tarde passou trazendo um vento forte de saudade, uma relembrança que agora só faz doer mais. E o velho vai deitar cansado, extasiado de tudo, alquebrado pelas pedras do caminho depois do entardecer. Mas talvez sonhe, e sonhe que vai acordar cedinho sendo um menino com feições da manhã.



Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com 

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