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A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



sábado, 2 de julho de 2011

TEMPESTADE - 54 (Conto)

TEMPESTADE – 54

                          Rangel Alves da Costa*


Fabiana até que procurou desmotivar o marido na sua intenção de enfrentar aquela terrível situação e ir até a comunidade do riachinho. Ela sabia que seria loucura tomar uma atitude assim, se arriscar em meio à tempestade e ainda por cima correr o risco de ficar preso no carro atolado e tomado de água.
Talvez o carro nem saísse da garagem, alegou a mulher. E acaso saísse não viraria duas esquinas e apagaria o fogo, o motor deixaria de funcionar. E como retirar o veículo de lá se não havia ninguém pra ajudar, como evitar que o carro ficasse todo inundado e sem ele poder sair do seu interior, vez que certamente tudo estaria num nível só de água? Argumentou e se aprofundou em argumentar muito mais.
Porém não havia jeito dele desistir. Tentando um último recurso, ela falou que não sabia onde estava a chave do veículo e que naquela escuridão seria impossível de encontrá-la. Mas Antonio se dirigiu até o bolso dela e pegou as chaves, perguntando somente se ela o acompanharia ou não.
Fabiana nunca havia confrontado o esposo, mas dessa vez se viu forçada a dizer que por mais que sentisse demais o que estava acontecendo com aquele povo e o quanto gostaria de estar lá para ajudar no que fosse possível, dessa vez não seguiria com ele não, pois sabia da loucura que seria arredar o pé dali. E chorou ao dizer que se Antonio fizesse realmente o que estava pensando era o mesmo que estar dando um adeus de despedida.
Verdade é que ela só ouviu o carro saindo da garagem e se deitou em prantos no sofá. Lá fora a escuridão plena, total, emoldurada pela ira do tempo, como se todos os moradores daquela região estivessem sendo colocados à prova, submetendo-se a dor e ao sofrimento por algum mal muito grave cometido. Ninguém era santo ali, nem tão inocente assim, com todo mundo adulto tendo a sua parcela de erros e pecados. Mas por que pagar preço tão alto?
O maluquinho já tinha explicado porque e dito que aquilo tudo era pra pagar o que faziam com ele, judiando-o, maltratando-o, sem que o mesmo jamais houvesse atirado uma pedra sequer numa pessoa ou ao menos falado que sicrano ou beltrano era feio ou gordo, barrigudo ou careca. Mas ninguém acreditava no que ele dizia. Doidinho como era, ninguém ouvia como verdade quase nada que vinha de sua boca.
Pela força e consequencia da tragédia, num dilúvio que se avolumava cada vez mais e a cada instante parecia redobrar sua força, sua sede, sua sanha, tornava-se até impensável que o maluquinho tivesse algo a ver com o que estava ocorrendo. Mas como alguém já havia dito que entre o céu e a terra há mais mistérios do que imagina a vã filosofia, então todo comedimento seria pouco para atinar sobre alguma verdade acerca do surgimento, manifestação e consequencias incalculáveis da faminta tempestade.
No caminho de casa, retornando para providenciar urgentemente a outra porção do remédio medicinal, e antes de sair da praça da igreja, Teté avistou uns faróis acesos, porém quis acreditar que as luzes cortantes lá do alto estavam refletindo na água que escorria volumosamente por baixo. Jamais iria acreditar que ali seriam as luzes dos faróis do carro de Antonio. Era impossível que alguém tentasse dirigir naquelas condições. Até um maluquinho sabia disso.
Ao passar pela igreja não quis entrar para se informar como estava passando o seminarista com medo de se atrasar mais ainda e não dá tempo de salvar nem um nem outro. Não atinava para o caso, mas já tinha feito a besteira de complicar tudo na divisão do remédio e na desnecessidade de retornar para arranjar mais, e agora parecia estar com a maior pressa do mundo.
Dentro da igreja, na parte destinada às celebrações, a vela ainda acesa iluminava opacamente por cima e deixava praticamente na escuridão o que estava mais embaixo. E era nesse local ao fundo, caída por cima do elevado do altar, que Antonieta continuava esparramada, ainda com os olhos arregalados. O caderninho com os escritos desconhecidos, misteriosos, apavorantes, com o poder de fazer desmaiar, parecia uma caixa de Pandora aberta bem ao lado.
As outras mulheres sabiam que ela estava em outro local da igreja, pois elas mesmas a enxotaram de lá, do quartinho da sacristia. Se não fossem os cuidados constantes com o doente já teriam percorrido cada canto em busca do caderninho que havia sido roubado da posse de Minervina, e todo mundo já sabia que só podia ter sido ela.
Ademais, enquanto Antonieta estava lá estendida, as amigas se preparavam para fazer com que Tristão virasse goela adentro quase meio copo de cachaça. Já que havia tido a ideia, então Minervina segurou o copo na mão, despejou cerca de duas doses, cheirou na beirada do copo, fez uma cara terrível, depois derramou um tiquinho no chão em louvor do santo e mandou que as outras preparassem o doente para receber forçosamente a bebida.
Ergueram um pouco o doente, levantaram um pouco a cabeça, abriram a boca cuidadosamente e em seguida a servidora se encaminhou com a golada certeira, com a cachaça retinta, pura, de cheiro forte e valente, e foi derramando na boca.
O coitado de Tristão despertou das profundezas da enfermidade, repugnou, fez jeito de quem iria botar pra fora, mas não teve como, engoliu tudo assim mesmo. Que percurso orgânico terrível teria sido, mas a cachaça desceu completamente. Agora era só esperar fazer o efeito.

                                                         continua...





Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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