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sexta-feira, 15 de julho de 2011

TEMPESTADE - 67 (Conto)

TEMPESTADE – 67

                          Rangel Alves da Costa*


Vendo o corpo da bela Saraí sumir nas águas, a noite, já toda pranteada, cantou silenciosamente um canto de despedida para a jovem morta pelo repentino enlouquecimento, e cantou o mesmo canto de Ismália, na mesma pena de Alphonsus de Guimaraens:

“Quando Ismália enlouqueceu,
Pôs-se na torre a sonhar...
Viu uma lua no céu,
Viu outra lua no mar.

No sonho em que se perdeu,
Banhou-se toda em luar...
Queria subir ao céu,
Queria descer ao mar...

E, no desvario seu,
Na torre pôs-se a cantar...
Estava perto do céu,
Estava longe do mar...

E como um anjo pendeu
As asas para voar...
Queria a lua do céu,
Queria a lua do mar...

As asas que Deus lhe deu
Ruflaram de par em par...
Sua alma subiu ao céu,
Seu corpo desceu ao mar...”

Se as pessoas da comunidade tivessem presenciado o extremo gesto, principalmente o corpo tão jovem e cheio de possibilidades na vida sendo levado pelas águas, tudo por causa da loucura que havia transformado em consciente aquele gesto, certamente iriam sofrer menos do que o merecido. Mas por que, se uma morte assombra e assusta demais, faz gritar coração e sentimentos, e deixa visível o semblante da descrença na vida?
Simplesmente porque o sofrimento naquele povo, naquela comunidade, e em todos indistintamente, já estava muito dividido. Por mais que a morte fosse tragédia dolorosa demais, ainda assim sobraria pouco espaço para demonstrar a dor. Assolados pelas forças destruidoras, vendo tudo que possuíam sendo ameaçado de destruição, tendo que suportar ver paredes caindo, as águas levando colchões e camas, roupas e panelas, portas e janelas, restos de comida, sacos vazios, esperanças e a própria vida.
Por isso mesmo que não haveria mais espaço exclusivo para o sofrimento com a morte de qualquer pessoa, ainda que tão jovem e tão bela, pois qualquer um poderia ser vitimado a qualquer instante. Mas a noite lembrou-se desse fato e chorou sozinha pela mocinha, entoou o seu canto e ficou ainda mais escurecida e soluçante. E as lágrimas derramadas como em cachoeira não deixavam mentir.
De Lourdes também choraria. E choraria porque sofria demais com os acontecimentos tristes nos outros. O sofrimento de alguém causava uma dor tão grande no seu coração que até parecia ser a desventura de algum parente ou amigo próximo. E já chorava por dentro só em imaginar o que aquelas pessoas, moradoras ali tão próximas, poderiam estar passando. E se derramaria em lágrimas se pudessem ver de perto aquela devastação toda.
Estava também dividida entre vários sofrimentos. Aquele causado pela tristeza da tempestade e as suas previsíveis consequencias, outro ocasionado pela solteirice contínua e atormentadora e uma vontade danada de beijar qualquer boca de qualquer homem, e ainda outro pela amiga Manu. Fazia tudo para não deixar transparecer, mas sofria ainda mais a cada instante que ela voltava a falar sobre sua casa, sem saber o que realmente tinha acontecido, sobre o desmoronamento.
“O que vai ser de mim e de minha filhinha, De Lourdes, se a minha casinha não aguentar mesmo esse temporal todo? Não tenho aonde ir, onde ficar, estou sem marido e desempregada. Sei fazer doce de tacho, pamonha de milho verde, canjica, bolo de todo jeito. E faria tudo isso pra sobreviver com minha filhinha Marilda, para não passar fome. Mas fazer mais o que se corro o risco de ter perdido a cozinha?”.
De Lourdes ouvia isso tudo como uma pontada no peito. Tinha vontade de dizer logo a verdade, porém não achava forças para tal situação. Mas sabia que tinha de falar de uma vez por todas sobre o acontecido à amiga, revelar que ela não tinha mais casa, não tinha mais móveis, não tinha cozinha pra cozinhar nada. E até que a sorte mudasse teria que arranjar outro local para morar com sua filha.
Decidiu que diria a verdade naquele momento. Talvez mais um pedaço do mundo caísse naquele instante, mas não haveria outro jeito. Mais cedo ou mais tarde isso teria de ser dito, então que fosse sem mais demora. E começou a falar:
“Manu, vou dizer uma coisa e peço que ouça com atenção, sem se afobar nem nada, sem desembestar de aflição. Mesmo se eu disser uma coisa que não lhe agrade, vá ouvindo com calma porque nessa vida tudo tem um jeito a dar. Sabe o que é minha amiga, é que a sua casa...”.
E foi interrompida pelo velho Timbé, que entrou nesse instante na sala para acabar de vez com aquele chove não molha. E foi logo direto ao assunto:
“Manu, vosmicê é cuma se fosse minha fia e entonce posso dizer que nunca nessa vida vai ficar desamparada, mas a verdade é que sua casa caiu, foi toda desfeita pela tempestade e não sobrou nem um prato inteiro. A boneca que Teté encrontou por cima das bagaceira trouxe pra cá tá ali, e pego já pra você. Foi o que ficou inteiro, ele disse. Mai pode ficar despeocupada que vosmicê e sua fiinha só vão sair de dentro desse barraco da gente quano Deus der uma nova casa a vosmicês e ai de dar logo, pruque ele é pai e é justo. Por isso mermo pode se sentir derna já cuma moradora dessa casa, cuma fia daqui, tanto vosmicê como a Marildinha”.
Manuela não disse uma palavra sequer, não chorou nem gritou. Diferentemente do que todos estavam esperando, que seria o esperneamento e o desmaio, ela apenas levantou e foi abraçar o velho amigo. Recostando a cabeça no velho peito começou a chorar baixinho.

                                                 continua...





Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

 

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