SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

A folha (Poesia)

A folha



Ando pelo mundo
entro numa casa
que tem uma sala
que tem uma estante
que tem um livro
e dentro desse livro
tem páginas antigas
e em meio ao tempo
uma folha seca
e nela um poema
escrito pra você

do mundo ao livro
não desejo nada
se posso com a folha
e o poema escrito
viver na plenitude
o amor de um dia
que acabou assim
numa estante triste
ao sabor da mão
que sente saudade

mas se retiro a folha
com o lindo poema
e fecho os olhos
para amar ainda
terei folha de outono
numa bela estação
e você ao meu lado
passeando no jardim
olhando nos teus olhos
e escrevendo versos
de tanto amor amar
sem saber que a paixão
seria um verso morto
na estação da solidão.


Rangel Alves da Costa

ESTÓRIAS DOS QUATRO VENTOS: A INVEJOSA

ESTÓRIAS DOS QUATRO VENTOS: A INVEJOSA

                                          Rangel Alves da Costa*



Conto o que me contaram...
Pelo próprio conceito já se sabe que não é coisa que preste, que é uma das piores características que o ser humano pode ter. E tudo mundo sabe disso, todo mundo diz que odeia e até recrimina o outro, mas no fundo do fundo essa tal de inveja está mais presente nas pessoas do que elas próprias imaginam.
Talvez todo mundo saiba de cabo a rabo o que é inveja, e não precisava nem estar abrindo livro para tomar conhecimento, bastando olhar nas atitudes do vizinho ou de si mesmo, e por que não? Tem gente que sente inveja até de si próprio, que o diga o outro que encobriu o espelho.
Os opúsculos dizem que a inveja é o misto de desgosto e ódio provocado pelo sucesso ou pelas posses de outrem; é o desejo intenso de possuir os bens de alguém ou de usufruir sua felicidade; é a vontade ou ambição de possuir ou gozar algum bem que outrem possui ou desfruta.
Enfim, a inveja é aquilo que vai secando o invejoso por não possuir ou conseguir aquilo que o outro possui, às vezes com exagerado esse esforço. O pior é que o invejoso quer apenas ter o que o outro tem de mão beijada, com facilidade, sem bater prego numa barra de sabão. Ora, logo pensa, se o outro tem porque não posso ter. Mas trabalha igual ao outro? De jeito nenhum.
Porque o outro tem e ele não tem, então começa a lançar o olho gordo, nojento, em cima da posse daquele. Muitas vezes, por saber que não conseguirá obter aquilo, implora por tudo na vida para que o desafeto imaginário se veja sem aquela conquista.
Gente safadinha, calhorda, vil, é a invejosa. Uma vizinha que não tinha o que fazer, subia num banquinho pra ficar mirando com olhos de inveja o jardim florido da vizinha. Cada vez que olhava e via plantas reluzentes, verdosas, flores sedosas e perfumadas, só faltava se morder de raiva.
Dava-lhe uma comichão, um avermelhamento na pele, uma mijadeira que ficava em tempo de se esborrachar pelo chão. Mas ficava ali, olhando no escondidinho, maldizendo a vida das plantas, desejando por tudo no mundo que elas secassem, as flores caíssem e tudo morresse. Mas para seu desgosto nada disso acontecia.
E porque suas preces e orações para que o jardim da outra ficasse completamente destruído não surtiam efeito, então resolveu que teria um jardim igual, com plantas e flores ainda mais bonitas ali na frente de casa. E foi numa loja de enfeites para o lar e comprou o Jardim Suspenso da Babilônia, as Tulherias, os jardins de Burle Marx, mas tudo de plástico.
Mandou instalar aquela parafernália nos muros de casa e ficou alucinada com tanta beleza. Cores demais, flores de todos os tipos, uma grama verdinha que parecia pintada à mão. Toda contente, ainda assim subiu no banquinho para fazer a comparação necessária com o autêntico jardim da outra.
E foi quando percebeu uma coisa que lhe atingiu como golpe fatal. Borboletas voavam ao redor, passarinhos faziam festa, um beija-flor beijava uma flor, e um perfume intenso e gostoso se espalhava pelo ar. Tudo daquilo que não poderia ter, e num desequilíbrio se esborrachou por cima de um girassol de polietileno.


Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

ZABÉ CANGACEIRA E LAMPIÃO (Crônica)

ZABÉ CANGACEIRA E LAMPIÃO

                                          Rangel Alves da Costa*


As peripécias e valentias de Zabé Cangaceira haviam se alastrado, ganhado o mundo nordestino, ecoado mata adentro até chegar aos ouvidos de Virgulino Ferreira da Silva, o temido Lampião. Informado sobre tudo que acontecia ao redor, de certo modo a saga da destemida já havia virado zunzum-zunzum dentre o bando, despertando-lhe diferenciado interesse.
O senhor das revoltas sertanejas logo quis conhecer além do que se comentava por ali, procurando saber de tudo, timtim por timtim. Um coiteiro se fez de mensageiro da notícia e contou a história da mulher de cabo a rabo. E confirmou que ela havia organizado um bando de mulheres raivosas, decididas e de armas em punho, que expulsaram das redondezas interioranas tudo que havia de homem casado safado e mulher quengueira.
Lampião achou interessante a história e, chamando-o perto de uma moita mais afastada, ordenou ao coiteiro que fosse até a dita valentona e lhe entregasse um bilhetinho que iria escrever. Então rabiscou três linhas dizendo que tinha muito interesse de conhecê-la pessoalmente, ali mesmo no esconderijo onde se encontrava. E pediu ao mensageiro que passasse todas as informações sobre como chegar ao lugar.
No dia seguinte, logo no clarear do dia, Zabé cortou vereda, subiu e desceu a serra, chegando enfim ao ninho de cobra acompanhada do coiteiro. Estranho é que já trazia um saco de mantimento, roupas apropriadas para a vida na caatinga e algumas armas que já guardava desde outras batalhas. Pelo jeito já tencionava ficar, como de fato ficou fazendo parte do bando.
Assim que a mulher foi apresentada ao Capitão e este a vasculhou de cima a baixo, e antes mesmo de qualquer conversa mais demorada, foi repassada ordem para que Zabé fosse apresentada aos demais cangaceiros e confirmado que dali em diante ela seria mais uma seguindo o mesmo destino. Mas quem não ficou gostando nem um pouquinho dessa história foi Maria Bonita, sua agrestina esposa.
Com o olho mais que apurado, retina de enxergar a cor dos olhos de vagalume no breu da noite, Maria Bonita percebeu um leve sorriso no rosto de Lampião assim que avistou a novata. E disse consigo mesma que aquilo não ia cheirar nada bem, pois se aquela zinha começasse a arrastar as asinhas pro seu homem não demoraria pra sair dali com uma quente e outra fervendo. Se não fizesse pior.
Mesmo se roendo por dentro, raivosa e enciumada até dizer chega, Maria Bonita preferiu silenciar e fazer de conta que não havia acontecido nada demais. Ora, era apenas mais uma mulher fazendo parte do bando, como aliás outras já o acompanhava há tempos. Só que aquelas outras já eram compromissadas com cangaceiro mesmo, muitas vezes vivendo as agruras daquela vida por amor ao seu homem. Mas agora a situação era outra, pois pelo que sabia a tal Zabé era solteira, espadaúda, bonitona.
Mas ficou mesmo em tempo de explodir quando viu Lampião abrir um embornal e escolher um vidro cheinho de perfume e seguir em direção a Zabé para lhe presentear. Levantou afoita, se formigando toda, e assim que o Capitão colocou a água de colônia na mão da outra, avançou feito raposa arisca e arrebatou o objeto, abrindo o frasco em seguida e derramando todo o líquido aos pés da nova e assustada cangaceira.
A atitude de Maria Bonita deixou Zabé num envergonhamento de baixar a cabeça para pensar melhor antes que tivesse uma reação desnecessária para aquele momento. Mas num segundo já lhe veio à mente o que fazer. E descaradamente disse: “Num tem nada não meu Capitão. Água de cheiro aos poucos perde mesmo o perfume. Diferente do perfume de sua presença, que cheira a sertão e a tudo de bom”.
As consequencias dessas palavras foram as piores possíveis para Zabé. Mesmo a força de Lampião, sua tentativa desesperada de que não acontecesse o pior, nada disso impediu que Maria Bonita apanhasse ao redor um pedaço de pau espinhento e partisse pra cima da desditosa. Deu uma paulada que a mulher se curvou toda, deu outra perto das ancas que os gemidos brotaram.
Não deixou a mulher completamente moída porque esta não esperou por tempo ainda pior. Deu um último olhar para o seu inerte Capitão e se danou a correr mundo afora, pulando por cima de pedras, arrancando garrancho, se lanhando toda nos espinhos de mandacarus e xiquexiques.
Lampião tinha os seus motivos para não interferir com mais força. Se quisesse Maria nem tinha derramado o perfume e começado aquele surramento todo. Até que gostaria que Zabé ficasse, mas até gostou que a cangaceira partisse. Seria mais difícil manter a paz entre aquelas mulheres do que lutar contra inimigos.       




Poeta e cronista
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Estrelas na escuridão (Poesia)

Estrelas na escuridão


Tudo silenciosamente triste
nem a chuva caiu sobre o cinza
nem as nuvens saíram de cima
e o que restou e ainda se espalha
é a noite de negrume e de breu
a escuridão sem a luz do luar
um imenso vazio a mortificar

meu amor vai chegar ainda
meu amor vai chegar agora
não posso enxergar adiante
mas o sopro do vento já diz
que há jasmim pela estrada
que a estrada está encantada
porque meu amor já vem
porque o amor vem trazendo
um buquê de luz e perfume
um céu estrelado no olhar
um jardim no seu caminhar

e quando meu amor chegar
tocarei a lua imensa e bela
no céu infinito de sua boca
e tudo será festa de luz e cor
no olhar estrelado do meu amor
e dançarei a valsa da noite
a valsa dessa paixão tão sã
amor que brilha feito manhã.


Rangel Alves da Costa

ESTÓRIAS DOS QUATRO VENTOS: GATA MARISCA NO CIO

ESTÓRIAS DOS QUATRO VENTOS: GATA MARISCA NO CIO

                                          Rangel Alves da Costa*



Conto o que me contaram...
No meu pernoitar pelo sertão, dormindo debaixo da lua e amanhecendo colhendo em louvor a alvorada, fiz descobertas incríveis, coisa de sarapantar como diria Macunaíma. E uma dessas, que agora me veio à memória e vou tentar relatar, envolveu uma bicharada safada demais.
Aquela gata marisca estava no cio, só podia estar. Desfilando toda cheia de leveza, com pelo limpo e brilhoso, cheia de olhos esverdeados olhando para todos os lados. Andando, parecia em passarela, ora ondulando, ora rebolando maliciosamente. E quando subia nos telhados ou nos troncos ao redor dava um miado que era mais que um chamado para a festa do acasalamento.
O problema é que ali não havia gato nenhum, qualquer felino macho que lhe encobrisse de segredos gateados, de beijos bichanos e afagos azunhentos. Só havia mesmo cachorro, papagaio, galinha, passarinho, galo, jegue, coelho, cabrito e rato. E pelo que vi nenhum rato namorava uma cabritinha ou uma cachorra paquerava um jumento.
Tudo bicho diferente demais da gatinha, o que necessariamente seria um fator a ser considerado na solução do seu problema, que era miar de prazer como toda gata gosta e quer na hora do amor. Aliás, já vi muitos miados de gatos. Miado alongado para demarcar território, miado fino quando está com fome, miado agudo quando está assustado. Sem falar no grunhido de enraivecimento.
Mas a gata miava de modo estranho demais, e era como se estivesse falando, gritando, dando psiu, solicitando urgentemente a presença de qualquer animal cheirando o seu lado traseiro. De rabinho sempre levantado, balançando incessantemente ou por vezes apenas erguido feito cordame endurecido, ela se punha a grunhir, a gemer, a fazer miau, miaaau, miaaaaaau, chegando por vezes a dizer au au bem fininho e baixinho.
Juro que tive pena da bichaninha. E que gatinha mais manhosa, mais bonitinha, mais cheirosinha, mais sedosamente encantadora. Mas tive ainda mais pena quando a bichinha, de rabinho ainda levantado, começou a se roçar numa pedra, a buscar prazer no contato com o pedregulho.
Mas em seguida percebi algo ainda mais estranho, pois tive certeza que a pedra estava se mexendo, atendendo aos apelos da bichaninha. E só tive a certeza que não era uma pedra, mas um cágado, quando vi os dois, a gatinha e a tartaruga, saírem felizes, apressados e de mãos dadas, em direção ao mato fechado adiante.
E tantos gemidos agataiados, tantos miaus prazerosos, que quase não tive mais sossego pelo resto do dia.  



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quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

ALCINO ALVES COSTA SERÁ HOMENAGEADO NO MUNICÍPIO DE NOSSA SENHORA DA GLÓRIA, NO SERTÃO SERGIPANO

AMIGOS MAIS QUE IMPORTANTES (Crônica)

AMIGOS MAIS QUE IMPORTANTES

                              Rangel Alves da Costa*


Sou de palavra, não sou de lorota não. Fujo da mentira como o malfeitor da cruz e não admito que me venham com inverdades. Digo logo isso porque sei que daqui em diante vão querer dizer que estou enlouquecendo ou tecendo um mundo de deslavada mentira.
Asseguro antes de prosseguir: tenho a mesma idade da pedra, da terra inabitada, da mata virgem; sou de uma herança mais longínqua do que o mais distante dos seus ancestrais; ensinei o vento soprar e a água correr; dobrei a curva da estrada e coloquei olhos onde não tem olhar. Quando tudo era somente silêncio, o nada, o vazio e o caos, eu já estava lá ajeitando tudo, colocando tudo no seu devido lugar.
Mas como não teve jeito, e tudo ficou a bagunça que ainda está, decidi descer o monte e caminhar por aí, conversando com a voz do tempo e dando bom dia a todos os amigos que pude encontrar. E foram muitos, mas somente sobre alguns vou falar nesse momento.
Encontrei Francisco, aquele mesmo nascido em Assis e hoje reconhecido como santo, numa das vezes que entrei na mata para colher frutos adocicados para matar a fome. Lembro como hoje, o bom Francisco estava sentado numa pedra em meio a uma clareira rodeado por passarinhos que voejavam em círculo. Pediu licença aos seus amigos de pena e bico e ficamos conversando por uma tarde inteira. Até hoje não esqueço as doces palavras, de tantas lições para a vida nem de uma pequena oração que começava dizendo “Senhor, fazei-me instrumento de Vossa fé...”.
Encontrei Tiradentes pela última vez quando era levado acorrentado pelas ruas do Rio de Janeiro em direção ao Campo da Lampadosa, onde o carrasco esperava para o enforcamento. Como eu estava numa esquina da Rua Velha, um tanto escondido por causa dos algozes famintos por injustiça, o vi olhando de relance, alcançando o meu olhar, num entristecimento infinito. Estava dolorosamente contrito, magoado demais com tanta iniqüidade e tirania, mas convicto de que morreria por um ideal de justiça e liberdade. E recordo que na última vez que dividimos uma xícara de chá nos escondidos de um porão, Joaquim José colocou a mão sobre o meu ombro e disse que sua morte seria o nascimento da consciência de um povo. Talvez não tenha acertado o meu bom amigo.
Encontrei Jorge Amado ao entardecer na casa da Rua Alagoinha, no Rio Vermelho, enquanto pilheriava com Caribé e Jenner Augusto. Não sei qual dos três era mais conversador, porém sei que o menino grapiúna era o mais desbocado. Recebeu-me com cerimônia, pois certa vez dei-lhe uns tapas na bunda na propriedade do seu pai, o coronel João Amado, lá pelas bandas dos rincões cacaueiros onde enriquecia num dia e empobrecia no dia seguinte. Havia ido até ali exatamente para dar um recado enviado por seu genitor, e para dizer em segredo que a mulata dourada, cor de cravo e canela, de nome Gabriela, estava esperando um filho seu. Ele me desmentiu na hora, dizendo que não duvidava do apetite sexual do seu velho, mas que dali em diante já sabia o que fazer com aquela tal de Gabriela. E deu nome da moça a livro que ganhou o mundo de tanta beleza e safadeza.
Encontrei Lampião logo que deixou Vila Bela depois de uma desavença familiar e se embrenhou sertão adentro para fazer justiça e levantar uma controvertida bandeira de luta. Eu disse menino tivesse muito cuidado, soubesse que toda vitória com sangue seria o mesmo sangue derramado na derrota. Tantas outras vezes fui chamado por ele para uma pergunta, uma indagação maior, uma humilde lição. Porém tudo que lhe disse e avisei parece jamais ter sido ouvido. E estive com o Capitão e sua Maria um dia antes do trágico acontecimento de 38. Chamei os dias num canto de mataria mais afastada e disse que no outro lado estava o maior zumzumzum sobre a presença da volante ali por perto. Dessa vez ele me ouviu e falou que dali a dois dias estaria levantando acampamento da Gruta do Angico. Mas nem teve tempo.
 Soube da morte do Capitão enquanto lia uma correspondência há muito enviada por outro grande amigo chamado Alexandre, filho de Felipe da Macedônia, mais tarde codinominado Alexandre, o Grande. No manuscrito me agradecia de coração por um dia eu ter indicado como seu professor um certo Aristóteles, cuja filosofia lhe fez muito bem nos anos de luta, vez que vivia sempre consciente que toda batalha só se justifica se, mesmo com a vitória, o guerreiro saiba que ainda não está completamente preparado.
E num tempo muito distante fui encontrado por Deus. Fiz tanta amizade que passei a viver eternamente à sua procura. E na última vez que o vi ainda não tive, nem quero ter tempo, de sair de sua presença.


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