AMIGOS MAIS QUE IMPORTANTES
Rangel Alves da Costa*
Sou de palavra, não sou de lorota não. Fujo da mentira como o malfeitor da cruz e não admito que me venham com inverdades. Digo logo isso porque sei que daqui em diante vão querer dizer que estou enlouquecendo ou tecendo um mundo de deslavada mentira.
Asseguro antes de prosseguir: tenho a mesma idade da pedra, da terra inabitada, da mata virgem; sou de uma herança mais longínqua do que o mais distante dos seus ancestrais; ensinei o vento soprar e a água correr; dobrei a curva da estrada e coloquei olhos onde não tem olhar. Quando tudo era somente silêncio, o nada, o vazio e o caos, eu já estava lá ajeitando tudo, colocando tudo no seu devido lugar.
Mas como não teve jeito, e tudo ficou a bagunça que ainda está, decidi descer o monte e caminhar por aí, conversando com a voz do tempo e dando bom dia a todos os amigos que pude encontrar. E foram muitos, mas somente sobre alguns vou falar nesse momento.
Encontrei Francisco, aquele mesmo nascido em Assis e hoje reconhecido como santo, numa das vezes que entrei na mata para colher frutos adocicados para matar a fome. Lembro como hoje, o bom Francisco estava sentado numa pedra em meio a uma clareira rodeado por passarinhos que voejavam em círculo. Pediu licença aos seus amigos de pena e bico e ficamos conversando por uma tarde inteira. Até hoje não esqueço as doces palavras, de tantas lições para a vida nem de uma pequena oração que começava dizendo “Senhor, fazei-me instrumento de Vossa fé...”.
Encontrei Tiradentes pela última vez quando era levado acorrentado pelas ruas do Rio de Janeiro em direção ao Campo da Lampadosa, onde o carrasco esperava para o enforcamento. Como eu estava numa esquina da Rua Velha, um tanto escondido por causa dos algozes famintos por injustiça, o vi olhando de relance, alcançando o meu olhar, num entristecimento infinito. Estava dolorosamente contrito, magoado demais com tanta iniqüidade e tirania, mas convicto de que morreria por um ideal de justiça e liberdade. E recordo que na última vez que dividimos uma xícara de chá nos escondidos de um porão, Joaquim José colocou a mão sobre o meu ombro e disse que sua morte seria o nascimento da consciência de um povo. Talvez não tenha acertado o meu bom amigo.
Encontrei Jorge Amado ao entardecer na casa da Rua Alagoinha, no Rio Vermelho, enquanto pilheriava com Caribé e Jenner Augusto. Não sei qual dos três era mais conversador, porém sei que o menino grapiúna era o mais desbocado. Recebeu-me com cerimônia, pois certa vez dei-lhe uns tapas na bunda na propriedade do seu pai, o coronel João Amado, lá pelas bandas dos rincões cacaueiros onde enriquecia num dia e empobrecia no dia seguinte. Havia ido até ali exatamente para dar um recado enviado por seu genitor, e para dizer em segredo que a mulata dourada, cor de cravo e canela, de nome Gabriela, estava esperando um filho seu. Ele me desmentiu na hora, dizendo que não duvidava do apetite sexual do seu velho, mas que dali em diante já sabia o que fazer com aquela tal de Gabriela. E deu nome da moça a livro que ganhou o mundo de tanta beleza e safadeza.
Encontrei Lampião logo que deixou Vila Bela depois de uma desavença familiar e se embrenhou sertão adentro para fazer justiça e levantar uma controvertida bandeira de luta. Eu disse menino tivesse muito cuidado, soubesse que toda vitória com sangue seria o mesmo sangue derramado na derrota. Tantas outras vezes fui chamado por ele para uma pergunta, uma indagação maior, uma humilde lição. Porém tudo que lhe disse e avisei parece jamais ter sido ouvido. E estive com o Capitão e sua Maria um dia antes do trágico acontecimento de 38. Chamei os dias num canto de mataria mais afastada e disse que no outro lado estava o maior zumzumzum sobre a presença da volante ali por perto. Dessa vez ele me ouviu e falou que dali a dois dias estaria levantando acampamento da Gruta do Angico. Mas nem teve tempo.
Soube da morte do Capitão enquanto lia uma correspondência há muito enviada por outro grande amigo chamado Alexandre, filho de Felipe da Macedônia, mais tarde codinominado Alexandre, o Grande. No manuscrito me agradecia de coração por um dia eu ter indicado como seu professor um certo Aristóteles, cuja filosofia lhe fez muito bem nos anos de luta, vez que vivia sempre consciente que toda batalha só se justifica se, mesmo com a vitória, o guerreiro saiba que ainda não está completamente preparado.
E num tempo muito distante fui encontrado por Deus. Fiz tanta amizade que passei a viver eternamente à sua procura. E na última vez que o vi ainda não tive, nem quero ter tempo, de sair de sua presença.
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com
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