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domingo, 29 de janeiro de 2012

ESTÓRIAS DOS QUATRO VENTOS: O ENGRAXATE E SUA FIEL AMIGA

ESTÓRIAS DOS QUATRO VENTOS: O ENGRAXATE E SUA FIEL AMIGA

                                          Rangel Alves da Costa*



Conto o que me contaram...
Tem coisa que a gente sabe sem nem precisar ouvir dizer, sem ninguém ter de contar. Está diante e adiante, ressalta aos olhos, faz ferir, faz doer. E isso não é estória não, mas uma verdade tão verdadeira que só falando com um para acreditar.
Um, um menino, um engraxate. Fale com ele, se aproxime sem medo – não morde não e nem vai querer lhe roubar -, ganhe sua confiança, dê-lhe um trocado se puder, e depois, quando um início de confiança já tiver se estabelecido, pergunte quem é o seu melhor amigo.
Antes que você faça isso vou relatar o que um meninote engraxate, desses que vivem rodeando os mercados perguntando a um e a outro se quer que passe graxa e flanela no sapato, me contou numa manhã em que estava ali para comprar beiju, pé de moleque e macasado, iguarias com coco e tapioca que me faz lamber os beiços.
Pois bem. Perguntei ao menino como era sua vida e ele respondeu enquanto melava o dedo na graxa marrom: “Minha vida é essa mesma, seu moço. Daqui pra casa, que fica bem longe. Estudo não e o que faço na vida é sair cedinho de casa pra ver se engraxo algum sapato”.
Perguntei-lhe em seguida se brincava como criança e se tinha tempo de fazer amigos. Eis a resposta: “Só fui criança até quando ainda não andava. Assim que aprendi a caminhar já foram me mandando fazer isso ou aquilo, principalmente sair descalço e só de calção rasgado pra pedir esmola na rua. Apanhava quando voltava com pouco dinheiro. Por isso que brincar nunca brinquei não, ainda que fosse a coisa que eu mais queria...”.
Então nunca fez amigos, gente assim de sua idade? Interrompi para questionar. “Conheço muito menino, lá de onde moro e da rua, mas só conheço sem ter tempo de fazer amizade. Até hoje posso dizer que só fiz um amigo, que não é gente nem menino, mas uma coisa que o senhor não vai nem acreditar”. Foi a resposta.
Interessado na revelação, urgentemente perguntei sobre essa amizade. E ouvi o seguinte: “Minha melhor amiga só vive comigo, bem juntinho de mim, bem do meu lado. E ela tá bem aqui nesse momento. Não fico com raiva porque ela até gosta disso, mas o senhor está com o sapato bem em cima dela, da minha melhor amiga...”.
Olhei assustado e fiquei sem entender. Mas ele prontamente continuou: “Espante não, seu moço, mas minha melhor amiga é essa caixa de engraxate aí. Tá vendo ela assim toda sujinha, envelhecida, parecendo que não presta mais pra nada, mas é mais importante pra mim do que tudo na vida. Converso com ela, beijo na sua madeira, ajeito bem ajeitadinha, e até uso ela como travesseiro de vez em quando. O senhor não vai acreditar, mas ela responde ao que falo, ela também fala comigo...”
E o que ela diz? Então ele deu um sorriso e respondeu: “Diz que já tá velha e precisa ficar descansando num canto me esperando voltar do trabalho. Mas um trabalho bom, trabalho de gente mesmo, coisa que parece que não tenho sido até hoje”.  




Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

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