SONS E CHEIROS DO MEU SERTÃO
Rangel Alves da Costa*
Toda vez que tomo café, coloco no prato um pedaço de cuscuz, abro um copo de coalhada industrializada ou mesmo ouço o latido de um cachorro na rua, começo a lembrar de um tempo passado onde cada gesto de se comer ou se ouvir era um ritual de verdadeira felicidade. E digo por quê.
Sou de lá, das plagas sertanejas, sergipano de raiz árida e são-franciscana, contudo menino de mato não, menino de rua sim. Infelizmente. E como eu queria ter nascido numa casinha ao pé da serra, na paz e sossego de meu Deus, longe dessa coisa que se diz civilização citadina. E ouvir lá perto do pé de a viola no vento, e lamber o doce suave da brisa.
Sou sertanejo autêntico, de nome e sobrenome, mas seria muito mais se a primeira luz que tivesse visto fosse perto da mataria, dos bichos indomados, da terra rachada, de um tal luar imenso e de um sol maior ainda. Sol de queimar a moleira, seu moço!
Mas anda e vira e estou pegando estrada, abrindo cancela, enchendo os pés de espinhos, pisando em ponta de pedra, me arranhando em toco e tentando driblar as armas afiadas nos garranchos, e tudo pra estar pertinho da natureza deslumbrante, ainda que debaixo do sol de lascar, na estiagem que deixa tudo magro demais e entristece e afunda ainda mais o olhar do meu povo. E qualquer dia me olho no espelho.
Saio cedinho, ainda no madrugar e parece que nem dou importância ao canto do galo no quintal ou dos zunidos dos quintais e arredores. Animal criado dentro de casa, perambulando pelas ruas, é como uma casa de jardim enfeitada com flores de plástico. Principalmente quando se sabe que é só virar a curva da estrada para encontrar o bicho na toca.
Gosto do canto do galo de casa não, nem do cachorro nem do papagaio. Tudo me parece normal e corriqueiro demais, sem o encanto e o encantamento do que encontrarei mais adiante assim que estiver perto da mataria, dos casebres empobrecidos, de uma gente que logo cedinho levanta para a luta do dia. A porta pode estar fechada, mas lá no quintal já se ouve o bater no pilão, o ralar do milho, se a safra deixou espigar.
E nesse meu percurso já sinto e ouço o cheiro do autêntico sertão, da inigualável melodia da natureza, do barulhar das folhagens, dos aromas que vão saindo pelos quintais das casinhas – pois local mais próximo da cozinha – e vão tomando os ares como um dança de enfeitiçamento. A comida é pouca, é quase nada, mas sempre tem, e quando está no fogão de lenha então é prazeroso feitiço.
Da mataria e até dos descampados logo se ouve os berros, mugidos, grunhidos, latidos, miados, pios, cantos passarinheiros. A rolinha fogo-pagô pula de um lado a outro no pé de pau, junto ao ninho de filhotinhos que pedem comida de bico aberto; o cancão, com seu piado alto e cortante está muito distante, porém é ouvido como estivesse nas galhagens da catingueira adiante.
Sabiá, coleirinho, azulão, canário, tiziu, cabeça, periquito e um festim de pena e cantoria formam a orquestra do amanhecer sertanejo. Sons que são cortados por outros timbres mais potentes, indefinidos, vindos de dentro da mata. Será a raposa, a onça pintada, a seriema, o veado, o guaxinim, o tamanduá, a codorna, a nambu, o preá, o coelho?
Bois, vacas e bezerros se ajeitam como podem, mugindo, grunhindo, ruminando de instante a instante, fazendo barulho enquanto mastigam a palma, roem o capim seco, mordem a folhagem. Os cavalos, éguas, bestas, burros e jumentos parecem conversar entre si, cada um com sua gíria matuta própria. E por todo lugar a galinha de capoeira, o gato, o papagaio, o cachorro. Êta gente que conversa é bicho!
Ouço também um chocalhar na beira da estrada, dentro de uma moita, embaixo de uma pedra, e é coisa de cobra cascavel não duvido. Aperto o passo não é com medo dela não, pois até gosto de trocar proseada com a danada, mas porque sinto um cheiro bom demais que vem duma casinha adiante.
Café torrado no pilão, preparado na velha chaleira, aroma e canto de sereia: entontece, deixa o cristão desesperado, eternamente perdido se não provar um tiquinho daquela gostosura. E depois de aberta a porta sou tomado pelo vapor do cuscuz de milho ralado ali mesmo.
Mas era só um golinho de café e um pedacinho de cuscuz. Mas que satisfação do coração. E mais adiante o chiado do leite saindo do peito da vaca e caindo diretamente no vasilhame; e mais adiante o queijo caseiro sendo cortado numa fatia de nuvem, talvez de céu; e mais adiante o panelão com a buchada que já vem de ontem; e mais adiante alguém gritando por mim e dizendo para ir até lá experimentar um pedaço de bolo de macaxeira.
Quanta riqueza na sua pobreza, sertão. E quantos sons e sabores não ouço e experimento por esse chão!
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com
Um comentário:
que pena que nem todos poço redondense não sabem que temos um verdadeiro gênio, saber que nossa terra criou um grante escritor. um dia quem sabe podemos trocar umas palavrinhas. até breve
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