ESTÓRIAS DOS QUATRO VENTOS: A MULTIPLICAÇÃO DA MENTIRA
Rangel Alves da Costa*
Conto o que me contaram...
Feito erva daninha, igualmente a tempo ruim que dá em todo lugar, a mentira é mal que se alastra de tal forma que ninguém jamais estará imune a tal epidemia.
Contudo, tem certos lugares onde ela se manifesta com mais força e despudor, onde se derrama com maior rapidez, se espalha sem ninguém perceber, e quando menos se espera uma pessoa já caiu covarde e absurdamente na boca do povo.
E dizem até que doença ruim se cura, praga de planta se combate, e enxame de bicho se espanta, mas pra mentira não há remédio de jeito nenhum. Depois que sai da boca da maldosa inteligência que a criou, uma vez passada por cima do muro ou através de conversinha de pé de ouvido, não há quem segure mais. E com as mais drásticas consequencias.
Numa dessas cidades interioranas, onde a mentira possui raiz fincada e a cada dia um joga água no pé para ver florescer vistosa, aconteceu um caso um tanto quixotesco. Até hoje não se sabe quem teve esse pensamento nefasto, até porque ninguém nunca diz, mas a verdade é que começou uma conversinha cheia de entrelinhas e esta foi crescendo de tal modo que...
A mulher varria a calçada e de repente, ao ver um moço passar adiante, comentou com a vizinha que já havia vindo puxar fofoca logo cedinho: “Sicrano tão bonito, mas anda tão esquisito, será que ta doente?”.
Não demorou duas horas e mais de cinco já sabiam que o rapaz estava doente. “Não vou dizer quem me disse, mas ouvi de boca que não mente que sicrano tá muito doente”. “Isso eu já sabia, só faltava ouvir alguma pra confirmar. O homem não dá um sorriso pra ninguém”.
Já no entardecer desse mesmo dia, segundo as mentiras que já haviam tomado as mais diversas feições, o rapaz já estava em ponto de morrer, não se sabendo mesmo porque ele ainda conseguia andar, se manter em pé.
E o pior: “Não posso dizer quem me disse, mas fiquei muito triste quando soube que sicrano não vai viver nem mais um mês, anda muito mal mesmo, desenganado pelos médicos. Até a família do homem já sabe. Fizeram tudo, pois viram quando foi atrás de macumbeiro, pai e mãe de santo, gente que promete curar com galinha preta em encruzilhada, tudo mesmo. E nada. Pra morte não tem mesmo jeito, não é amiga?”.
E no outro dia foi festa ao olhar, semente na boca dos mentirosos, quando viram o rapaz pegar o trem levando uma maleta. Assim que o fumacento partiu foi a maior correria. “Você viu, comadre, ele foi morrer longe daqui”. “Não quis morrer no seu lugar, preferiu ir morrer num lugar onde ninguém lhe conhecesse”. “Também com as doenças ruim que tava, dizem que mais de duas, e dessas que deixa o doente com pé na cova. Credo em cruz, que vá levar mesmo doença ruim pra lá...”.
E o rapaz tranquilamente, bem sentado e contente no vagão do trem, lendo um livro despreocupadamente. Não sabia que ia morrer pela língua do povo, mas tinha certeza para onde ia. Curtir a vida, a paz e a saúde à beira da praia.
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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