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sábado, 21 de janeiro de 2012

O MENINO QUE QUERIA ESTUDAR (Crônica)

O MENINO QUE QUERIA ESTUDAR

                                          Rangel Alves da Costa*


Assunto novo e tão antigo, que mesmo tendo acontecido outro dia ainda se pensaria ter ocorrido há muito tempo. Essa coisa de menino deixar de ir pra escola estudar porque tem de trabalhar até já faz parte das páginas vergonhosas da história do país. Aliás, num bocado de coisa é um desavergonhado esse país tão corretamente conceituado por De Gaulle.
Verdade é que o tempo passa e tudo parece vergonhosamente se repetir. Tudo se repete acobertado por um novo discurso, principalmente nas promessas que fazem para uma educação de qualidade. Então começam as pregações de uma educação para todos, que lugar de criança é na escola e que é crime o trabalho infantil. Mas como se diz por aí, muitas vezes as palavras são eloqüentes, bonitas demais, e por isso mesmo impraticáveis.
Zezim era o nome dele; João era o nome do pai dele; Zefinha o nome da mãe. Miúda família, do mesmo tamanho da riqueza material que possuía. Era verdadeiramente pobre na mais pura acepção da palavra. Se chovia, a plantação na rocinha dos fundos para a subsistência; se o tempo era de seca, como sempre acontecia, o ganhar pão da família dependia de qualquer mão-de-obra que o dono de casa conseguia.
Tal situação de pobreza, não obstante ser um problema grave para a família e o seu sustento, trazia para o menino consequencias gravíssimas, sendo o principal deles não freqüentar a escola, mesmo que já tivesse passado da idade de aprender as primeiras letras. Já estava grandinho o pestinha.
A mãe nunca havia matriculado o filho por vergonha, segundo dizia ao esposo, que aceitava tal situação porque precisava dele para outros interesses. E vergonha porque não tinha caderno, lápis, borracha, um sapatinho nem uma roupa decente pra ele freqüentar a escola. Certa vez tinha ouvido da moça diretora do grupo escolar que ali só entrava menino calçado e com roupa decente, ainda que remendada. O seu menino não tinha esse luxo todo.
E outros interesses porque o pai achava que ele era mais útil ajudando no trabalho da terra do que estudando. Desse modo, o menino nunca havia freqüentado a escola, ainda que não existisse sonho, desejo e vontade maiores na sua vida. Chegava a sentar à sombra do umbuzeiro e ficar imaginando saindo de casa todos os dias para ir è estudar, fazer amizade com outros estudantes, escrever uma carta, ler o que a professorinha pedisse.
Nesses momentos limpava a terra ao redor, pegava um graveto adiante e começava a riscar o chão como se estivesse escrevendo de verdade. Assim, o umbuzeiro era sua escola, o chão era sua cadeira, a terra o seu caderno e o graveto o seu lápis. E quanto escrevia o menino, cartas, romances, histórias fantásticas, versos para a namoradinha de um dia. Mas tudo somente na sua cabecinha sonhadora.
Outro dia, enquanto estava de enxada na mão limpando umas ervas daninhas nos fundos de casa, avistou dois amigos de sua idade, moradores nas redondezas, seguindo em direção à escola. Iam pela estrada com roupas simples, talvez remendadas, levando caderninhos à mão e talvez lápis sem ponta no bolso, mas cheios de contentamento e felicidade.
Então ele baixou o olhar entristecido, juntou à cabecinha ao cabo da enxada e chorou por alguns instantes. Em seguida olhou para o alto, para o sol escaldante, limpou as lágrimas com a mãozinha enrugada, suspirou bem fundo e voltou ao trabalho. Mas agora disposto a escrever uma carta pra Deus. E ali onde estava, por cima da terra mesmo. Se Deus estava no alto, lá de cima talvez ele pudesse ler o que iria escrever, pensou.
Assim, se afastou mais um pouco pra não ser percebido pelos seus pais, limpou a terra bem limpinha, depois passou a enxada por cima deixando-a lisinha, do jeito que gostaria que estivesse seu caderninho quando fosse escrever. Com um graveto maior, e à moda daquele jesuíta que escrevia nas areias da praia, começou a rabiscar sua carta para ser lida pelo pai lá de cima.
Bastaram poucos rabiscos, pois na sua mente já diziam tudo que pretendia dizer. E lá escreveu umas coisas disformes, somente compreensíveis ao seu olhar e daquele que já estava enxergando, vendo tudo, como sempre acontece:
“Meu Deus, meus amigos vão pra escola, meus amigos vão aprender a ler e escrever, meus amigos mais tarde vão ser doutores de anel no dedo. E por que só eu não posso ir pra escola e se quero escrever tem que ser nesse caderno de chão e com lápis de garrancho? Se não for pedir muito, meu Deus, faça com que eu também tenha o direito de estudar”.
Não demorou muito e ouviu um grito vindo de sua casa. Era sua mãe dizendo que seu pai estava cochilando quando teve um sonho com ele sendo doutor de anel no dedo. E o menino, alegremente surpreso, disse que pelo que sabia todo doutor primeiro tinha de estudar, e muito.
Então a mãe mandou o menino ir correr atrás de duas galinhas das poucas que restavam na malhada para vender e comprar um sapatinho, um caderninho e um lápis.




Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

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